COGESTÃO COMO ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO E ARTICULAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE EM UM DESASTRE DE SAÚDE PÚBLICA

COLLABORATIVE MANAGEMENT AS A COMMUNICATION AND COORDINATION STRATEGY FOR THE UNIFIED HEALTH SYSTEM IN A PUBLIC HEALTH DISASTER

GESTIÓN COLABORATIVA COMO ESTRATEGIA DE COMUNICACIÓN Y COORDINACIÓN DEL SISTEMA ÚNICO DE SALUD EN UN DESASTRE DE SALUD PÚBLICA

RESUMO

Os desastres impõem imensos desafios ao Sistema Único de Saúde (SUS) diante da necessidade de planejar e tomar decisões em cenários complexos que requerem ações articuladas entre os diferentes níveis de atenção. Diante disso, têm-se o objetivo de apresentar a cogestão como prática exitosa para promover a comunicação e articulação do SUS no incêndio da Boate Kiss. Trata-se de um estudo qualitativo-descritivo e exploratório documental. No cenário de crise, houve o atendimento de 577 pessoas e transporte aéreo de 57 pacientes críticos. Posteriormente, 836 pessoas foram agendadas para triagem, sendo realizadas 1.309 consultas e 349 exames. Na Central de Informações, foram registradas 2.053 vítimas, 56 serviços e 93 tipos de atendimentos realizados. Concluiu-se que a cogestão foi capaz de instituir espaços transversais de comunicação, articulação e organização de processos que contribuíram para a mitigação do desastre.

PALAVRAS-CHAVE: Interdisciplinaridade; Educação em Saúde Pública; Equipe de Assistência ao Paciente; Inovação Organizacional; Recuperação em Desastres; Despacho de Emergência de Incêndio.

ABSTRACT

Disasters pose immense challenges to the Unified Health System (SUS) due to the need to plan and make decisions in complex scenarios that require coordinated actions between the different levels of care. In view of this, the objective is to present co-management as a successful practice to promote communication and coordination of the SUS in the Kiss nightclub fire. This is a qualitative-descriptive and exploratory documentary study. In the crisis scenario, 577 people were treated and 57 critical patients were airlifted. Subsequently, 836 people were scheduled for triage, with 1,309 consultations and 349 exams being performed. The Information Center recorded 2,053 victims, 56 services and 93 types of care provided. It was concluded that co-management was able to establish transversal spaces for communication, coordination and organization of processes that contributed to the mitigation of the disaster.

DESCRIPTORS: Interdisciplinarity; Public Health Education; Patient Care Team; Organizational Innovation; Disaster Recovery; Fire Emergency Dispatch.

RESUMEN

Los desastres imponen enormes desafíos al Sistema Único de Salud (SUS) debido a la necesidad de planificar y tomar decisiones en escenarios complejos que requieren acciones articuladas entre los diferentes niveles de atención. En este sentido, el objetivo es presentar la cogestión como una práctica exitosa para promover la comunicación y articulación del SUS durante el incendio de la Boate Kiss. Se trata de un estudio cualitativo-descriptivo y exploratorio documental. En el escenario de crisis, se atendió a 577 personas y se realizó el transporte aéreo de 57 pacientes críticos. Posteriormente, se agendaron 836 personas para triage, realizando 1.309 consultas y 349 exámenes. En la Central de Información, se registraron 2.053 víctimas, 56 servicios y 93 tipos de atenciones realizadas. Se concluyó que la cogestión fue capaz de instituir espacios transversales de comunicación, articulación y organización de procesos que contribuyeron a la mitigación del desastre.

PALABRAS CLAVE: Interdisciplinariedad; Educación en Salud Pública; Equipo de Atención al Paciente; Innovación Organizacional; Recuperación en Desastres; Despacho de Emergencia de Incendio.

INTRODUÇÃO

Eventos extremos como o rompimento da barragem em Brumadinho e Mariana e a enchente ocorrida no Rio Grande do Sul (RS) reforçam a necessidade de compartilhar estratégias de mitigação e formação de profissionais para atuar nessas situações no país. Tais calamidades são classificadas em desastres, catástrofes e emergências em saúde pública dependendo da sua magnitude. Um desastre é aquele que produz uma séria ruptura do funcionamento normal de um território, resultando em perda de vidas, recursos materiais, econômicos e ambientais. Na saúde pública, gera danos e agravos às condições de salubridade da população, produzindo uma demanda massiva por atendimentos que excede a capacidade local e exige ajuda nacional e internacional 1, 2.

Essas situações demandam o emprego imediato de medidas preventivas, protetivas e de contenção de riscos a fim de evitar o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS). Neste sentido, impõem grandes desafios diante da necessidade de planejar e tomar decisões em cenários complexos, altamente dinâmicos e distintos dos riscos habituais do território afetado. Essa conjectura requer uma resposta coordenada entre os diversos níveis de atenção à saúde 3 e, para isso, os espaços de cogestão são primordiais para promover a comunicação e articulação da rede assistencial.

A cogestão é caracterizada por um modo de administrar que inclui o pensar e o fazer coletivo, buscando democratizar as relações na saúde. Significa a inclusão de novos sujeitos na gestão, em um exercício interdisciplinar, comunicativo, crítico-reflexivo e pedagógico que promove a qualificação de profissionais para atuarem no SUS 4. Assume, portanto, papel de destaque em calamidades que exigem o planejamento sistêmico, pautado na ampla visão das necessidades da população e interlocução entre os serviços de saúde. Este foi o objetivo de uma experiência inédita de cogestão que atuou no desastre em saúde pública ocorrido na cidade de Santa Maria no RS. Tal evento foi classificado como o 2º maior incêndio em número de vítimas do Brasil 5 e 3º maior desastre em casa noturna do mundo 6.

Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, um incêndio causado por um dispositivo pirotécnico na Boate Kiss resultou em 242 óbitos e 1.222 intoxicações por monóxido de carbono e cianeto de hidrogênio (HCN) 7, 8. O HCN é um agente químico líquido ou gasoso, altamente volátil e tóxico que pode ser absorvido por via oral, nasal e cutânea 9, causando confusão mental, acidose metabólica grave, hipotensão, convulsões, disritmias cardíacas e coma 10. Tal exposição gerou uma demanda elevada por atendimento de urgência e emergência que superaram rapidamente a capacidade municipal 7.

Para intervir nesse cenário emergencial, foi imprescindível o trabalho conduzido pela Força Nacional do SUS (FN-SUS) 4. Trata-se de um programa de cooperação que executa ações de prevenção, assistência e enfrentamento às emergências em saúde pública de importância nacional. Atua na perspectiva da cogestão para ampliar a capacidade de resposta diante da exaustão dos recursos locais 11.  

Somando-se a FN-SUS, foi instituída uma estratégia de cogestão loco-regional denominada “Grupo Gestor do Cuidado” que foi composto por gestores, profissionais da saúde, controle social e usuários. Este colegiado gestor tinha o objetivo de garantir o cuidado longitudinal às vítimas do incêndio e gerenciar as ações assistenciais de forma compartilhada. Diante disso, este relato visa apresentar a cogestão como prática exitosa para promover a comunicação e articulação do SUS em um desastre de saúde pública.

MÉTODO 

Trata-se de um relato com base em um estudo retrospectivo, qualitativo-descritivo e exploratório documental que compreendeu o período de 27 de janeiro de 2013 a 1 de janeiro de 2015. Os sujeitos de pesquisa foram os integrantes mais assíduos do Grupo Gestor do Cuidado: duas gestoras regionais, uma gestora federal, duas gestoras municipais, quatro profissionais de saúde e um representante da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). O estudo teve aprovação ética (Parecer Nº 555.053).

A pesquisa utilizou duas técnicas de abordagem: entrevista semiestruturada e observação participante. Inicialmente, entrevistou-se os sujeitos individualmente, utilizando questionário semiestruturado com treze perguntas: oito questionavam o processo de instituição, dinâmica operacional e objetivo do colegiado gestor e cinco buscavam avaliar o próprio grupo, seus resultados e desafios de continuidade. Após, realizou-se uma oficina pedagógica para discussão coletiva das respostas. Por fim, realizou-se uma análise exploratória documental em registros e sites governamentais.

 RESULTADOS

Inúmeras ações civis e públicas buscaram mitigar os danos do desastre. Neste relato, dar-se-á ênfase àquelas que foram desencadeadas pela FN-SUS e Grupo Gestor, enquanto estratégias de cogestão. As ações serão apresentadas em quatro períodos de tempo:  

I) Fase de Crise ou Emergencial (72 horas);

II) Fase Pós-Crítica ou Hospitalar (90 dias);

III) Fase Ambulatorial (12 meses);

IV) Fase de Recuperação ou Pós-desastre (5 anos).

I - Fase Emergencial

Foi o período imediatamente após o incêndio. Neste cenário, a FN-SUS instalou o “Gabinete de Crise” para operacionalizar a remoção dos pacientes críticos para Porto Alegre. Foram transportadas 57 vítimas com queimaduras graves pela Força Aérea Brasileira (FAB) e destas, 49 necessitaram de ventilação mecânica (VM) 12 (Figura 1).

Figura 1: Transporte de pacientes utilizando helicóptero e avião da FAB.

Fonte: BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório apresentado ao Grupo Gestor do Cuidado na Reunião de avaliação das ações em prol das vítimas do incêndio, no Hospital Universitário de Santa Maria. Santa Maria, 2013.

Nas primeiras horas após o incêndio, foram atendidas 577 vítimas em Santa Maria, das quais 117 foram internadas e 35 utilizaram VM 13. Para dar suporte assistencial, o Ministério da Saúde (MS) disponibilizou duas ambulâncias, 30 oxímetros de pulso, 52 ventiladores mecânicos, 15 monitores multiparâmetros, 67 profissionais da FN-SUS, 10 especialistas em fibrobroncoscopia, 120 profissionais de saúde mental e inúmeros medicamentos. A média de pacientes críticos que receberam alta hospitalar foi de 98,7% 13.

A ajuda internacional ocorreu através da articulação da FN-SUS com órgãos dos Estados Unidos para obtenção de 140 unidades do Cyanokit®. Este medicamento é utilizado como antídoto para o cianeto e, na época do incêndio, não estava disponível no país e nem tinha registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) 7. Após o término da fase emergencial, os profissionais da FN-SUS retornaram aos seus locais de origem, exigindo uma reconfiguração da gestão loco-regional para dar continuidade às ações assistenciais.

 

II - Fase Hospitalar

Este período foi marcado pela necessidade de ampliação da capacidade hospitalar e pelo cenário de exaustão dos recursos especializados. A primeira ação para contornar isso, foi a publicação das Portarias 677 e 700 de 2013 que disponibilizaram R$1.652.480 reais para o melhoramento da infraestrutura hospitalar e contratação de 34 profissionais de saúde para o atender no Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes (CIAVA) 14.

Quadro 1: Termo de Compromisso para continuidade da atenção à saúde das vítimas.

Fonte: BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório apresentado ao Grupo Gestor do Cuidado na Reunião de avaliação das ações em prol das vítimas do incêndio, no Hospital Universitário de Santa Maria. Santa Maria, 2013.

Quando iniciaram as primeiras altas hospitalares, muitos sobreviventes procuram à farmácia estadual com prescrições médicas, solicitando a dispensação imediata de vários medicamentos. Isso gerou uma demanda excepcional, pois o serviço não dispõe de amparo legal nem aparato técnico para operar nestes termos. Contudo, valendo-se do Decreto de Emergência, foram dispensados medicamentos de processos administrativos em caráter emergencial. A partir disso, foi realizado o acompanhamento da adesão ao tratamento que permitiu a construção de uma ferramenta online para o monitoramento e busca ativa dos pacientes 15.

A fim de evitar que novos problemas ocorressem, o Gabinete do Ministro da Saúde publicou um Extrato de Compromisso com vigência de cinco anos (Quadro 1), para dar resposta à necessidade de cogestão loco-regional. Isso permitiu a configuração do Grupo Gestor do Cuidado, agregando instituições públicas, profissionais da saúde, atores sociais e vítimas do incêndio. Em tempo recorde, o Grupo Gestor organizou mutirões de atendimentos para triar as necessidades das vítimas. Houve ampla divulgação nos meios de comunicação. O agendamento foi realizado pelo FormSUS no site do MS (Figura 2); telefone 136 da Ouvidoria do SUS; por busca ativa e por demanda espontânea 16.

Figura 2: Cadastro para atendimento dos Mutirões em Santa Maria.

Fonte: http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/

Ao todo, 836 indivíduos foram cadastrados no FormSUS. Destes, 405 compareceram aos mutirões, ocasião em que foram realizados 349 exames e 1.309 consultas com 11 especialidades (Tabela 1). A maioria dos atendimentos foram da pneumologia (n=249), seguido da fisioterapia (n=206) e neurologia (n=105). Cento e quarenta profissionais e estudantes trabalharam de forma voluntária 16. Os cadastros e atendimentos permitiram o mapeamento das demandas e o planejamento das ações necessárias para o cuidado longitudinal.

Tabela 1: Atendimentos e procedimentos realizados nos mutirões em Santa Maria.

Ações realizadas

1o Mutirão

2o Mutirão

TOTAL

Consultas

Acolhimento / triagem

271

134

405

Pneumologia

159

90

249

Neurologia

73

32

105

Oftalmologia

14

0

14

Fisioterapia

111

95

206

Otorrinolaringologia

34

13

47

Enfermagem/GELP*- Queimados

14

7

21

Fonoaudiologia

46

20

66

Assistência Farmacêutica

71

11

82

Emergência Psiquiátrica

1

16

17

Saúde do Trabalhador

23

18

41

Atendimento Psicossocial

56

0

56

Total de Consultas

873

436

1.309

Exames

Exames de Imagem

24

75

99

Exames Laboratoriais

22

13

35

Espirometria/Oscilometria

62

70

132

Teste de Caminhada

26

35

61

Eletroneuromiografia

16

6

22

Total de Exames

150

199

349

TOTAL

1.023

635

1.658

Fonte: BRASIL. Ministério da Saúde. Atendimentos e procedimentos realizados nos mutirões em SM. 2013. Nota: GELP (Grupo de Estudos em Lesão de Pele).

III - Fase Ambulatorial

Este período foi marcado pela necessidade de instituir a transição do cuidado e definir fluxos de referência e contrarreferência. Inúmeros serviços realizavam o acompanhamento dos pacientes e havia dificuldade de acessar e compartilhar informações atualizadas que eram essenciais à articulação da rede assistencial. A amplitude de especialidades e dos níveis de atenção envolvidos no cuidado contribuíram para isso, contudo, o real motivo é a inexistência de um prontuário eletrônico integrado no SUS.  

Para contornar este problema, foi elaborada uma planilha no Microsoft Excel® e compartilhada online via Google Drive®. Uma solução simples, rápida, prática e sem custo de implantação que permitiu a atualização de informações em tempo real entre os diferentes pontos de atenção. Não houve a necessidade de treinamento dos profissionais para a utilização da ferramenta, o que permitiu a sua incorporação imediata.

Ainda sobre comunicação, os pacientes e familiares solicitavam constantemente para que fossem divulgadas mais informações sobre os atendimentos ambulatoriais e medicamentos disponíveis no SUS. Estes informes foram disponibilizados no site da AVTSM e adicionalmente, foi criada uma interface para a digitação de dúvidas sobre o uso dos medicamentos no “Espaço do Sobrevivente” deste site. A mensagem era enviada para o e-mail de uma farmacêutica do Grupo Gestor e a resposta retornava ao e-mail da pessoa demandante 7.

O acesso aos medicamentos foi uma pauta recorrente durante toda a fase ambulatorial. Em relação a isso, o Grupo Gestor atuou na elaboração da Resolução CIB-RS 646 de 2013 que possibilitou a compra e dispensação de medicamentos não incorporados no SUS para o tratamento de pele (filtro solar e hidratante) e problemas respiratórios (sendo eles: salmeterol/ fluticasona, N-acetilcisteína, fluticasona, indacaterol e ciclesonida) 7. Em 18 meses, foram disponibilizados 350 medicamentos para 88 sobreviventes 14.

IV - Fase Pós-Desastre

Este período foi caracterizado por ações interinstitucionais entre educação, saúde, justiça e direitos humanos. Várias estratégias foram articuladas em prol da estruturação do cenário municipal para vivenciar a data do primeiro ano após o incêndio. Foram realizados encontros nas universidades, acolhimento para os novos acadêmicos, ações de apoio psicossocial e atividades lúdicas sobre elaboração do luto nas escolas municipais e estaduais. Todas as ações convergiram para o dia 27 de janeiro de 2014, ocasião em que o Grupo Gestor e a FN-SUS participaram do Congresso Internacional Novos Caminhos - A vida em transformação da AVTSM.

Passados 16 meses do incêndio, uma integrante do Grupo Gestor foi nomeada coordenadora do “Programa Estadual de Redução de Danos (PERD)”, vinculado à Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos, com o objetivo de ampliar as ações de acompanhamento das vítimas da Boate Kiss. Tal iniciativa, desenvolveu a Central de Informações (Figura 2) junto ao Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação do RS (PROCERGS). O objetivo era criar um sistema que permitisse registrar o itinerário terapêutico e os dados clínicos para o cuidado longitudinal. Assim, a Central de Informações pretendia substituir a planilha online compartilhada entre os serviços e contribuir para a resolutividade do SUS 8.

Figura 2: Sistema de informações elaborado pelo Programa Estadual de Redução de Danos.

Fonte: GOVERNO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos. Projeto de implementação do Programa Estadual de Redução de Danos. Porto Alegre, 2014.

A Central de Informações permitiu o registro de 2.053 vítimas diretas e indiretas, a partir dos cadastros do FormSUS e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) 16. Foram identificados 1.697 cadastros (82,66% do total). A maioria eram vítimas diretas, sendo 485 sobreviventes e 242 vítimas fatais. Em relação às vítimas indiretas, 312 eram familiares; 355 eram pessoas com diversos envolvimentos com o desastre (94 possuíam relacionamentos afetivos com vítimas fatais; 190 atuaram no local do incêndio e 19 eram profissionais envolvidos no resgate) 8. Infelizmente, não foi possível finalizar a identificação, pois a troca do governo estadual após as eleições resultou na desativação do PERD e da Central de Informações.

DISCUSSÃO

Para que a cogestão obtivesse êxito na mitigação do desastre ocorrido na Boate Kiss, foram necessárias inúmeras ações para integrar a rede assistencial e um ponto vital para isso foi: a comunicação, acesso-compartilhamento de informações. Tal feito foi possível pela instituição de dispositivos que permitiram a comunicação efetiva entre os diferentes serviços e atores da saúde, e fosse extensível também aos gestores no âmbito da justiça e dos direitos humanos, usuários e controle social.

Neste cenário, é oportuno destacar a importância de sistematizar a coleta e análise de dados para a disseminação de informações 17. Para isso, é imprescindível um sistema de informações robusto e integrado. É raro encontrar experiências que puderam desenvolver um recurso próprio e ajustado às suas necessidades como a Central de Informações aqui descrita. Ao passo que isso representou um avanço na mitigação do desastre, também denunciou uma fragilidade persistente de comunicação, registro, acesso-compartilhamento de informações na saúde pública no país.

Outro ponto de suma importância é a articulação dos diferentes níveis de atenção, e para isso é necessário recursos humanos qualificados 17. Portanto, é preciso estruturar programas de formação profissional que capacitem tais atores para a gestão estratégica em todas as fases de mitigação das calamidades, preparando-os para trabalhar de forma interdisciplinar; a fim de prevenir riscos, organizar respostas, reabilitar as condições de vida e reconstruir a comunidade 3.

No desastre de SM, a cogestão foi uma estratégia loco-regional de qualificação profissional quando organizou espaços de mediação com atores da Política Nacional de Humanização, Médicos sem Fronteira, profissionais bombeiros, consultores, civis voluntários, entre outros 13. No entanto, para haver resposta adaptativa do SUS em outros eventos calamitosos, é necessário haver estratégias nacionais permanentes para a formação de recursos humanos especializados com expertise em desastres e em gestão pública.

Do ponto de vista político-democrático, a cogestão permitiu a instituição de dispositivos efetivos de negociação, definição de prioridades, organização de processos e administração de imprevistos que foram capazes de influenciar políticas e mobilizar recursos para a execução das ações pactuadas. Em grande medida, a transversalidade contribuiu para este feito. Em sua perspectiva, os diferentes entes públicos podem conversar com a experiência das pessoas e territórios que requerem o cuidado. Juntos, esses saberes podem produzir saúde de forma corresponsável 18, 19.. Tal abordagem garantiu que as decisões fossem pautadas pelas necessidades da população, contribuindo para uma gestão mais responsiva e adaptada ao cenário local.

Conduzir ações complexas de cuidado longitudinal, inovadoras e sem precedentes - visto que não haviam informações sobre os desfechos da exposição ao cianeto - só foram possíveis pela multiplicidade de fazeres e saberes. Foi fundamental ter gestores de todas as esferas do SUS, profissionais, pacientes e atores sociais compondo estes espaços de cogestão.  Essa configuração única, marcada pela maturidade e pelo aprendizado acumulado ao longo do processo, destacou-se como um exemplo de construção coletiva e adaptativa, reafirmando a importância da transversalidade na produção de saúde, especialmente, em uma situação de desastre.

CONCLUSÃO

As ações descritas como resultados exitosos no desastre da Boate Kiss foram desencadeadas por dois arranjos de cogestão: a FN-SUS e o Grupo Gestor do Cuidado. Ambos reforçaram o papel central que a saúde pública detém na mitigação de danos nas calamidades, operando por meio de distintos setores em diferentes temporalidades. Para isso, foram articuladas ações integradas que definiram atribuições claras através de uma comunicação efetiva que só foi possível a partir da criação de dispositivos próprios para contornar os desafios operacionais do SUS. Isso propiciou práticas transversais e a qualificação de profissionais em todas as esferas de gestão. Pensada desta forma, a cogestão oportunizou a pluralidade de visões, o que minimizou os pontos cegos e reforçou os laços entre os diferentes atores, possibilitando a corresponsabilização pelas ações e seus resultados.

 

DECLARAÇÕES

Este artigo foi financiado em parte pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código Financeiro 001 e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

REFERÊNCIAS

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