CONSEQUÊNCIAS DA PANDEMIA NA REAFIRMAÇÃO DA “MASCULINIDADE FRÁGIL”: VULNERABILIDADE BIOLÓGICA E SOCIAL
CONSEQUENCES OF THE PANDEMIC ON THE REAFFIRMATION OF “FRAGILE MASCULINITY”: BIOLOGICAL AND SOCIAL VULNERABILITY
CONSECUENCIAS DE LA PANDEMIA EN LA REAFIRMACIÓN DE LA “MASCULINIDAD FRÁGIL”: VULNERABILIDAD BIOLÓGICA Y SOCIAL
Kelven Ferreira dos Santos - Enfermeiro, Especialista em Obstetrícia. Hospital Sofia Feldman. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9380-7553
Débora Luana Ribeiro Pessoa - Doutora em Biotecnologia, Professora do curso de Medicina . Universidade Federal do Maranhão. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9817-5647
Kardene Pereira Rodrigues - Mestre em Enfermagem, Professora do curso de Gestão Hospitalar. Faculdade Gianna Beretta. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9705-0877
Francyelson Lobato Sena - Enfermeiro, Especialista Doenças Infecciosas e Parasitárias. Fundação Oswaldo Cruz. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7916-1274
Rafael da Silva e Silva - Enfermeiro, Universidade Federal do Maranhão. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3999-4316
Thimóteo de Oliveira Cardoso - Mestre em Ciências Sociais, Professor do Departamento de Ensino Superior e Tecnológico. Instituto Federal do Maranhão. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4180-6874
RESUMO
Objetivo: investigar aspectos biológicos e sociais, relacionando-os aos índices de óbitos no sexo masculino. Metodologia: Trata-se de um estudo exploratório-descritivo. Resultados: 2.536 óbitos notificados por 174 municípios e divulgados pela Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão. A letalidade no estado é de 2,5%, mulheres apresentam 1,7% e nos homens 3,4%, principalmente naqueles com idade entre 60 a 80 anos. Conclusão: Observou-se que a construção das masculinidades e as questões de gênero impactam os indicadores e mostram a complexidade do cuidado à saúde com equidade, evidenciando a necessidade de pensar a saúde do homem em seu contexto social e incluí-los nas ações de promoção e prevenção de saúde.
PALAVRAS-CHAVE: COVID-19; Masculinidades; Vulnerabilidade
ABSTRACT
Objective: to investigate biological and social aspects, relating them to death rates among males. Methodology: This is an exploratory-descriptive study. Results: 2,536 deaths were reported by 174 municipalities and released by the Maranhão State Health Department. The lethality rate in the state is 2.5%, with women accounting for 1.7% and men for 3.4%, mainly among those aged 60 to 80 years. Conclusion: It was observed that the construction of masculinities and gender issues impact the indicators and show the complexity of health care with equity, highlighting the need to think about men's health in their social context and include them in health promotion and prevention actions.
KEYWORDS: COVID-19; Masculinities; Vulnerability.
RESUMEN
Objetivo: Investigar aspectos biológicos y sociales, relacionándolos con los índices de muertes en el sexo masculino. Metodología: Se trata de un estudio exploratorio-descriptivo. Resultados: 2.536 muertes notificadas por 174 municipios y divulgadas por la Secretaría Estatal de Salud de Maranhão. La letalidad en el estado es del 2,5%, siendo 1,7% en las mujeres y 3,4% en los hombres, principalmente en aquellos con edades entre 60 y 80 años. Conclusión: Se observó que la construcción de las masculinidades y las cuestiones de género impactan los indicadores y muestran la complejidad del cuidado de la salud con equidad, evidenciando la necesidad de pensar la salud del hombre en su contexto social e incluirlos en las acciones de promoción y prevención de la salud.
PALABRAS CLAVE: COVID-19; Masculinidades; Vulnerabilidad.
Recebido: 10/01/2025 aprovado: 20/01/2025
Tipo de artigo: Artigo Original
INTRODUÇÃO
Na cidade chinesa de Wuhan, no final de 2019, foi descoberto um novo vírus denominado de SARS-CoV-2. O mecanismo de transmissão atualmente proposto ocorre por gotículas de pessoas sintomáticas ou não. Segundo o Protocolo de manejo clínico do coronavírus (Covid-19)¹ na Atenção Primária à Saúde (2020), a doença é caracterizada por sua alta transmissibilidade e por manifestar-se como uma Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) de letalidade variável, a priori, de acordo com a idade do indivíduo acometido, variando de 0.2% a 0.4% em jovens e adultos e de 3.6% a 14.8% em idosos.
Constatou-se que além da faixa etária duas outras variáveis são notabilizadas como importantes para mensurar a letalidade do vírus, a saber, pessoas com comorbidades (Hipertensão Arterial Sistêmica, Diabetes Mellitus, cardiopatias e pneumopatias) e aparentemente simples fato de ser do sexo masculino. Os que se encaixam nesse recorte apresentaram pior prognóstico e consequentemente maior taxa de letalidade do vírus ²,³.
O Boletim Epidemiológico divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Maranhão (2020)4 os homens totalizavam 45% dos infectados por COVID-19, porém quando avaliados o número de óbitos os homens representaram 62%. A análise do porquê da maior evolução da doença ao óbito em usuários dos serviços de saúde masculinos e/ou com comorbidades a uma nova infecção letal no contexto brasileiro, deve estar aliada à consciência da necessidade de ressignificar os indicadores biológicos e sociais, assim como compreender até que ponto determinados indivíduos já se encontram em uma situação de vulnerabilidade e difícil inserção nos cuidados à saúde5.
Muito da problematização se deve aos aspectos relacionados a construção da masculinidade e seu viés contextual6, algo que estaria relacionado à categoria científica “gênero” e não ao “sexo” propriamente dito7.
Um dos conceitos de gênero considerados para o debate é o de Judith Butler, afirmando que “O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”7. Assim, o arquétipo de um tipo de homem puro, único, aceitável que inferioriza todas as demais manifestações incide diretamente no cenário em discussão e o reconhecimento do caráter dessa variável, “ser homem”, está relacionado diretamente ao maior desprezo do cuidado com a saúde8 e deve ser ressaltado no texto presente.
A vivência de um contexto bastante atípico – a OMS declarou no dia 11 de março que as nações deviam se preparar para lidar com uma “Pandemia” – serviu para lançar luz sobre a vulnerabilidade social dos indivíduos do sexo masculino, concordante com Mendes9, ou seja, tratar tal situação não como caso isolado, mas como características complexas e de múltiplas origens, sejam elas sociais, culturais, econômicas ou políticas.
Desta feita, permeando a consideração e crítica dos dados oficiais que apontam a vulnerabilidade, apresentaremos, primeiramente, (a) o aspecto biológico: comumente considerado imune às questões sociais, geralmente portando um caráter mais objetivo, puro, “natural”. Em seguida, o que chamamos de (b) aspecto social – pré-designado aqui como aspecto comportamental, categorizado comumente como “auto-cuidado”, municiado de condicionantes que fogem ao controle tanto da esfera biológica como da esfera singular do indivíduo, aspectos relidos como “não-naturais” e, dependendo da corrente teórica considerado objetivo ou subjetivo.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo exploratório-descritivo, realizado no estado do Maranhão. Neste estudo, foram analisadas as informações referentes aos óbitos masculinos e femininos testados positivos para COVID-19 no estado divulgados em forma de boletins epidemiológicos entre os dias 27 de março e 14 de julho de 2020 pela Secretaria de Estado de Saúde do Maranhão (SES-MA), totalizando 2536 óbitos em usuário com idade entre 02 meses e 112 anos. Entende-se tal pesquisa como portando caráter bibliográfico de coleta, privilegiando a discussão já existente no que tange a “saúde, vulnerabilidade e masculidade”.
Coletou-se informações referentes ao município de residência, idade, sexo, comorbidades, data de óbito e data de liberação do resultado do exame, totalizando notificações de 174 municípios do estado. Como forma de analisar as comorbidades específicas, foram categorizadas em Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS), Diabetes Mellitus (DM), Oncológicas, Afecções Renais, Neurológicas, Cardiopatias e Outros fatores de risco (obesidade, distúrbios endócrinos, reumáticos, autoimunes, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, pneumopatias, tabagismo, etilismo, distúrbios urológicos e digestórios e transtornos psiquiátricos).
A letalidade foi calculada pela fórmula:
Taxa de letalidade =
Os dados consolidados foram agrupados em planilhas no programa Microsoft Excel 2019 e tabulados no Stata® para análise descritiva das variáveis idade, sexo e comorbidades, determinando-se as frequências.
RESULTADOS
No dia 27 de março o Maranhão não apresentava nenhum óbito, entretanto já apresentava 348 casos suspeitos e 14 casos confirmados em São Luís e 39 casos suspeitos em Imperatriz. Além do fator demográfico, as duas maiores populações do Maranhão, as cidades citadas apresentam aeroportos e por esta razão maior circulação de pessoas entre várias outras cidades do país e do exterior – fator delineador da transmissibilidade até o momento no qual foi declarado situação de transmissão comunitária[1]. A maior quantidade de óbitos entre homens encontra-se
nos grandes centros de São Luís (47.33%) e Imperatriz (10.43%).
Tabela 1 – Regiões de Saúde de moradia dos homens que evoluíram a óbitos por COVID-19. Maranhão, 2020.
Variáveis | n | % |
Regiões de saúde | ||
São Luís | 745 | 47.36 |
Açailândia | 58 | 3.69 |
Bacabal | 44 | 2.80 |
Caxias | 44 | 2.80 |
Barra do Corda | 25 | 1.59 |
Balsas | 10 | 0.64 |
Chapadinha | 68 | 4.32 |
Codó | 34 | 2.16 |
Imperatriz | 164 | 10.43 |
Itapecuru Mirim | 34 | 2.16 |
Pedreiras | 64 | 4.07 |
Pinheiro | 51 | 3.24 |
Presidente Dutra | 11 | 0.70 |
Rosário | 32 | 2.03 |
Santa Inês | 78 | 4.96 |
Viana | 26 | 1.65 |
Timon | 26 | 1.65 |
São João dos Patos | 13 | 0.83 |
Zé Doca | 46 | 2.92 |
Total | 2.536 | 100 |
Fonte: Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão, Boletim epidemiológico COVID-19
Foram analisados 2.536 óbitos positivos para COVID-19, totalizando 1.573 do sexo masculino, com letalidade de 3.4% e 963 notificações do sexo feminino com letalidade de 1.7%. A maioria dos óbitos foram de idosos (78.15%) com idade entre 60 e mais de 70 anos com letalidade para a faixa etária entre 60 e 70 anos de 6.9% e maiores de 70 de 18.5%. Ao analisar cor/raça, 44.24% dos pacientes que evoluíram à óbito foram declarados como pardos e 31,98% das notificações não constavam a informação referente a cor/raça, ao calcular a taxa de letalidade, os indivíduos encaixados na categoria cor/raça preta apresentam maior letalidade (4.6%), seguida da cor parda (3.3%) e branca (2.8%).
Tabela 2 - Características sociodemográficas dos casos que evoluíram a óbitos por COVID-19. Maranhão, 2020.
Variável | n | % | Letalidade (%) | |
Sexo | ||||
Feminino | 963 | 37.97 | 1.7 | |
Masculino | 1.573 | 62.03 | 3.4 | |
Idade | ||||
0 a 9 anos | 15 | 0.59 | 0.8 | |
10 a 19 anos | 13 | 0.51 | 0.2 | |
20 a 29 anos | 25 | 0.99 | 0.2 | |
30 a 39 anos | 85 | 3.35 | 0.4 | |
40 a 49 anos | 148 | 5.84 | 0.9 | |
50 a 59 anos | 268 | 10.57 | 2.3 | |
60 a 70 anos | 609 | 24.01 | 6.9 | |
Mais de 70 anos | 1.373 | 54.14 | 18.5 | |
Cor/Raça | ||||
Amarela | 194 | 7.65 | 1.3 | |
Branca | 245 | 9.66 | 2.8 | |
Indígena | 9 | 0.35 | 2.4 | |
Parda | 1.122 | 44.24 | 3.3 | |
Preta | 154 | 6.07 | 4.6 | |
Ignorados | 811 | 31.98 | 2.0 | |
Comorbidades | ||||
Presentes | 2.166 | 85.41 | 2.13 | |
Ausentes | 370 | 14.59 | 0.4 | |
Total | 2.536 | 100 |
Fonte: Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão, Boletim epidemiológico COVID-19
A tabela 3 mostra a distribuição dos óbitos em homens segundo a faixa etária, onde 55.88% apresentavam idade entre 60 e 80 anos. No que tange a cor/raça a proeminência foi da cor/raça parda (26.89%), seguida dos óbitos que a cor/raça foi ignorada (19.99%). A análise da presença de comorbidade mostra a Hipertensão Arterial Sistêmica como a mais prevalente (36.20%), seguida da Diabete Mellitus (23.32%) e Outros fatores de risco (11.68%).
Tabela 3– Faixa etária, cor/raça, comorbidades e região de saúde dos óbitos em homens por COVID-19. Maranhão, 2020.
Variável | n | % |
Idade agrupada entre homens | ||
<21 | 13 | 0.83 |
21-39 | 65 | 4.13 |
40-59 | 267 | 16.97 |
60-80 | 879 | 55.88 |
≥81 | 349 | 22.19 |
Cor/Raça | ||
Amarela | 116 | 4.57 |
Branca | 155 | 6.11 |
Indígena | 5 | 0.20 |
Parda | 682 | 26.89 |
Preta | 108 | 4.26 |
Ignorados | 507 | 19.99 |
Comorbidades |
|
|
Presentes | 1.310 | 83.28 |
Ausentes | 263 | 16.72 |
Total | 1.573 | 100 |
Fonte: Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão, Boletim epidemiológico COVID-19
A tabela 4 mostra a distribuição dos óbitos em homens segundo a presença de comorbidades, onde a Hipertensão Arterial Sistêmica apresenta-se como a mais prevalente (36.20%), seguida da Diabete Mellitus (23.32%) e Outros fatores de risco (11.68%).
Tabela 4 – Quantidade de comorbidade dos homens que evoluíram a óbitos por COVID-19. Maranhão, 2021.
Variáveis | n | % | ||
Quantidade de comorbidades notificadas | ||||
Hipertensão Arterial | 871 | 36.20 | ||
Diabetes Mellitus | 561 | 23.32 | ||
Cardiopatias | 179 | 7.44 | ||
Neurológicas | 95 | 3.95 | ||
Afecções Renais | 92 | 3.82 | ||
Oncológicas | 64 | 2.66 | ||
Outros fatores de risco | 281 | 11.68 | ||
Sem Comorbidades | 263 | 10.93 | ||
Total | 2.406 | 100 |
Fonte: Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão, Boletim epidemiológico COVID-19
DISCUSSÃO
Ao analisar as diferenças da evolução de uma doença até o óbito é importante que se faça o delineamento da pesquisa através de escolha das variáveis a serem consideradas, evitando a aleatoriedade de informações não sistematizadas. No que tange ao recorte sexo/gênero temos um campo abrangente de análise que perpassa a esfera biológica e a complexidade dos aspectos culturais presentes nas relações sociais.
Sexo e Gênero são categorias que designam mundos analíticos também diferenciados. Se em um primeiro momento, foram pensadas como sinônimos, tendo em vista o domínio do olhar biológico sobre o comportamento, o avanço das pesquisas no campo sócio-antropológico ou mesmo no campo da saúde propiciaram novas perspectivas de análise6.
Margareth Mead (1901-1978) foi uma das pioneiras no que se tornaria o debate antropológico sobre gênero antes mesmo da existência da categoria formalizada. Na pesquisa que resultou no livro “Sexo e Temperamento”(1935), a antropóloga analisou sociedades nas quais o comportamento/temperamento dos indivíduos parecia ter outro padrão de diferenciação, destoava do padrão único e biologicamente reconhecido ocidentalizado. As características que se admitia como típicas e naturais da mulher e do homem na sociedade estadunidense não condiziam com os padrões presentes nas sociedades estudadas10. A crítica de Mead apontava para a necessidade de análise do como interpretamos o temperamento dos indivíduos a partir do sexo, puro e ideal, quando, os indícios são claros para a necessidade de analisar o todo social na ocasião da interpretação da mesma10.
O resgate dessa análise clássica das ciências sociais visa “colocar em suspenso” os dados expostos. Ainda que se se apresentem como sólidos, objetivos, de categorias firmadas em definições biológicos/anatômicos/fenotípicas como cor/raça7, é num conjunto de práticas sociais estabelecidas a partir de uma “estrutura reguladora” “altamente rígida”7 que podemos ler os papéis diferenciados que vivenciam a população investigada. Tal reconhecimento contribui em essência para entender a maior letalidade de homens em relação a números de mulheres nesse contexto de Pandemia. O que só agrava o fato de que, ainda que considerando o tema com a devida abrangência, a vulnerabilidade do sexo/gênero masculina é ressaltada e reafirmada.
Não poucas vezes a análise sobre a vulnerabilidade a doenças se faz a partir de um recorte anatômico, genético, ou seja, um olhar biológico como determinante. Com efeito, no contexto biológico, alguns fatores explicam a maior quantidade de óbito entre homens quando comparado aos óbitos entre mulheres no Estado do Maranhão por COVID-19, como por exemplo o hormônio estrogênio como ativador imunológico que regula positivamente as citocinas pró-inflamatórias (TNFα), quando comparado à testosterona que suprime o sistema imunológico ou o modelo proposto que relata o cromossomo X e os genes ligados ao X onde aproximadamente 1500 genes são envolvidos no sistema imunológico 11,12.
Ao avaliar os resultados clínicos da COVID-19, observou-se diferenças nas respostas entre os sexos quando comparados os dados de infecção e mortalidade. As diferenças entre os sexos afetam nas respostas imunes e na evolução da COVID-19, tratou os dados para responder a maior mortalidade entre a população masculina, resultando em níveis plasmáticos mais elevados de citocinas imunes inatas, como as Interleucinas (8 e 18) 13.
No contexto biológico, evidências corroboram com os resultados encontrados, explicando a diferença entre o sistema imunológico de homens e mulheres e a atuação protetiva do hormônio estrogênio. Logo, infere-se que, para além do recorte de análise do comportamento, o simples fato de ser mulher, torna um ser menos vulnerável. O sexo masculino é frágil 13. No contexto pandêmico, ele tem muito mais a se preocupar, muito mais perdas a contabilizar.
Entretanto, ao discutir temáticas que envolvam saúde e sexo biológico, deve-se compreender como as definições de ‘masculino’ e ‘feminino’ tem um impacto significativo que condicionam as práticas de saúde, por conta disso os fatores biológicos não devem ser analisados de forma isoladas, pois as diferenças entre homens e mulheres são dependentes de influências externas e questões culturais 14.
Antes de ressaltar o caráter frágil do homem para além do aspecto biológico, faz necessário um adendo sobre a necessidade que tal análise crítica social trás de análise da ciência per si. A própria razão de existir (motivo ontológico) da ciência prescreve o seu caráter não absoluto, dentre outros motivos por ser proveniente de um ser que apesar de ter, vocação científica, é indissoluvelmente social, ou seja, não neutro15.
Muitos fatores decisivos são explicados pela cultura machista hegemônica. Práticas com tais vínculos tendem a colaborar com as complicações e evoluções ao óbito em indivíduos masculinos. A criação de um comportamento com base no tipo ilusório de homem indestrutível, que posterga a busca por atendimento até que se chegue aos quadros agudos da doença16, diminuindo substancialmente a chance de controle dos sintomas e da doença como um todo, adiciona conteúdo ao presente debate.
Frente a essa construção social, ocorre a idealização da figura masculina, atribuindo ao homem características de superioridade que subestima a prevenção e cuidado da saúde, pois relaciona esses temas à fragilidade 17. Nas tabelas, verifica-se o dobro de óbitos entre homens, quando comparados aos óbitos em mulheres por COVID-19 no Maranhão, o que pode ser lido como reflexo da deficiência no acesso masculino ao atendimento no Sistema Único de Saúde.
A procura pela Atenção Primária em Saúde (APS) no início dos sintomas é baixa e a porta de entrada na Rede de saúde dá-se pela atenção ambulatorial ou hospitalar. Geralmente a procura pelo serviço acontece quando os homens não conseguem realizar o manejo em domicílio, retardando e dificultando o tratamento, tendo por consequência a elevação da morbimortalidade e aumento das disparidades entre gêneros9. Entende-se que por mais tautológico que pareça a vulnerabilidade do homem tende a ser maior justamente por ele se achar menos vulnerável às doenças. A ideia de força, poder, domínio, virilidade tende a construir um homem que não existe no âmbito biológico assim como passa a ser hostil no âmbito social6.
No que tange ao autocuidado em saúde masculino, percebe-se a existência de uma tendência pela priorização do modelo médico centrado e curativista em detrimento da prática de ações preventivas e de promoção da saúde a médio e longo prazo, a interferência da masculinidade baseada em conceitos de virilidade e força fragiliza e enfraquece o usuário, afetando diretamente no processo saúde-doença18. Esses aspectos são integrantes da construção social do “homem” e essas características são decisivas para o aumento dos fatores de risco nos casos de infecção pelo SARS-CoV-219.
O recorte que aponta a fragilidade masculina apresenta a catalização dos números a partir de observações transversais como faixa etária, cor, comorbidades. Tais números só corroboram com a ênfase numa masculinidade mais perecível no que tange ao risco. Observou-se que entre pacientes masculinos maioria dos óbitos ocorreram na faixa etária de 60 a 80 anos (55.88%), sobre a análise do painel epidemiológico brasileiro, que apontaram 58.3% de óbitos da população masculina do total de mortes por COVID-19 no Brasil20.
Segundo análise comparativa do risco de morte da infecção por SARS-CoV-2, entre China e Itália, existe um risco maior dos italianos em comparação com os chineses por conta de características específicas da população que vulnerabilizam os homens como hipertensão (31.5%), doenças cardiovasculares (27.7%) e Diabetes Mellitus (25.1%)21.
O estudo mostra que entre os óbitos com comorbidade 36.20% apresentavam hipertensão arterial. Mesmo não comprovada se a pressão arterial não controlada é um fator de risco para a aquisição de COVID-19, o controle da pressão arterial continua sendo uma consideração importante para reduzir a carga da doença, mesmo que não tenha efeito sobre a suscetibilidade à infecção viral por SARS-CoV-222, sendo assim, atenção especial deve ser dada à proteção cardiovascular durante o tratamento para COVID-1922.
Diabetes mellitus também se mostrou importante ao analisar os óbitos, estando presente em 23.32% dos indivíduos. Até o momento, não há estudos que demonstrem valor preditivo independente de diabetes na mortalidade em pacientes com COVID-19, mas existem muitas especulações sobre a associação entre diabetes e suscetibilidade a novos coronavírus, bem como seu impacto na progressão e prognóstico da COVID- 1923.
As comparações com estudos internacionais corroboram para identificação premilinar do efeito das principais doenças crônicas nos casos de óbitos por COVID-19 na população masculina. Tem-se expectativa de que em breve, com o desenvolvimento das pesquisas e a solidificação dos números, muito poderá ser revelado sobre o quanto o comportamento dos homens que vivem com doenças crônicas – que imprescindem do autocuidado – e subestimam o tratamento alocam-se numa categoria social altamente suscetível. O autocuidado em saúde está envolto em estigmas patriarcais21.
A população masculina apresenta um perfil de posterga a procura por assistência em saúde por conta de suas relações sociais e de trabalho. A partir do parâmetro “trabalho” a atenção a saúde é vista como necessária (geralmente) apenas para as doenças graves, quando impossibilitam a execução das atividades cotidianas, buscando atendimento para as manifestações consideradas “leves” nos sistemas informais e populares como benzedeiras e curandeiras24. Ou seja, outros fatores como a necessidade de sair de casa, de tomar à frente na busca das provisões podem ser pensadas como possíveis variáveis de análise. E nesta, os homens também saem atrás, ou seja, também se mostram indefesos24.
Numa sociedade em que a primazia dos afazeres públicos é do homem, a primazia da exposição de sua fraqueza também o é. É importante objetar que até o próprio discurso que afirma que o homem é que “sai para trazer dinheiro pra casa” precisaria de análise com dados mais objetivos do que essa herança patriarcal de homem provedor que em muitos contextos não faz mais sentido, não é palpável pelo menos no que tange à economia de uma casa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo apresenta como limitação o que também pode ser visto como a razão de sua abrangência, a saber o caráter preliminar dos dados da Pandemia. A limitação se dá pelo constante anseio da ciência de mensuração, e o que temos em mãos ainda é pouco, incipiente diante do que se necessita para uma análise densa. A abrangência se dá justamente pelo fato de usarmos a incipiência para alertar para uma tendência já vista e preliminarmente endossada nos primeiros números da Pademia 2020, a masculinidade é destrutível. Para além de uma destruição de outros, como a feminilidade, a masculinidade é autodestrutível.
A necessidade de se considerar o gênero e suas interfaces, a imprescindibilidade de considerar o caráter complexo de uma aparentemente simples vulnerabilidade genética, faz com que o alerta deste artigo seja de consideração urgente. Ao invés da vulnerabilidade biológica condicionar, direcionar, incidir luz sobre a vulnerabilidade social, o que se entende como relacionável aponta para a vulnerabilidade social construída a partir de uma masculinidade típica machista e viril direcionando, indicando, agravando todos os outros condicionantes.
O que conceituaríamos como comportamento machista agrava a condição biológica suscetível a doenças do homem. O comportamento machista agrava a vulnerabilidade sócio-espacial perceptível nos números. O comportamento machista exagera a vulnerabilidade presente na separação dos papéis no que tange à essência pública do serviço do homem. Apresenta este em contraposição a condição caseira do “lugar da mulher”. Condição prescrita por um ideal típico patriarcal construído e endossado pessoal e institucionalmente ainda hoje. Aponta-se que a vulnerabilidade do homem tem como variável independe, variável que provoca mudança em outras variáveis justamente o fato do homem não se achar vulnerável. A fraqueza do homem seria o pensar que é forte.
Observou-se, neste, contribuições para âmbito da Saúde do Homem ao discutir sobre aspectos da construção da masculinidade e o impacto na morbimortalidade por COVID-19 e na Saúde Pública, ao expor a análise da distribuição dos óbitos no estado.
A temática masculinidade pensada em relação com a pandemia causada pelo SARS-CoV-2 discutida ao longo desta pesquisa mostrou a complexidade que versa a atenção à saúde. Durante o processo saúde-doença as questões de gênero impactam nos indicadores gerais de maneira velada à primeira vista, mas profundamente perceptíveis e capazes de grande interferência.
Pensar a saúde do homem em seu contexto social e cultural considerando a falta de equidade e paridade de gênero como catalizadores de problemas. A partir daí, entende-se a necessidade de buscar com urgência a inclusão do usuário da saúde em vulnerabilidade, pensando ações de promoção e prevenção especificamente para este segmento. Cônscios de que a falta de participação, a invisibilidade e o afastamento das ações preventivas apontam a para a fragilidade da saúde do homem em tempos de pandemia.
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