A VIDA COM HIV/AIDS NAS RELAÇÕES FAMILIARES

LIFE WITH HIV/AIDS IN FAMILY RELATIONSHIPS

LA VIDA CON VIH/SIDA EN LAS RELACIONES FAMILIARES

Maria Irene Ferreira Lima Neta

Mestra e Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) no núcleo de Psicossomática e Psicologia Hospitalar.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1247-509X

Edna Maria Severino Peters Kahhale

Mestra e Doutora em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo (1993). Pós Graduacao em Psicologia Clinica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8711-2931

RESUMO

A maioria dos estudos sobre HIV/Aids foca principalmente na pessoa vivendo com HIV, pouco se estuda as relações  familiares destas pessoas. Objetivo: analisar como se configura o HIV nas relações familiares de pessoas vivendo com HIV. Método: Trabalho realizado em um Ambulatório de Infectologia de São Paulo/SP com 37 idosos PVHIV e 19 familiares. Resultados: mostram que o HIV nas relações familiares podem ser coadjuvantes ou determinante destas relações. Coadjuvante quando outras problemáticas familiares mostram-se maiores e o viver com HIV não interfere nas relações familiares. Porém, outras famílias vivem em alerta constante com medo de contaminar alguém, medo de que outras pessoas venham a ter conhecimento e limita as relações, ocasionando isolamento familiar. Conclusão: O HIV nas relações familiares revela a qualidade destas anteriormente ao HIV de modo que aflora algumas mudanças que precisam ser enfrentadas a fim de promover o protagonismo de seus membros.

PALAVRAS-CHAVE: Idoso; HIV/Aids; relações familiares.

ABSTRACT

Most studies on HIV/AIDS focus mainly on people living with HIV, with little study of these people's family relationships. Objective: To analyze how HIV is configured in the family relationships of people living with HIV. Method: Study conducted at an Infectious Diseases Outpatient Clinic in São Paulo/SP with 37 elderly people living with HIV and 19 family members. Results: Show that HIV in family relationships can be a supporting factor or a determining factor in these relationships. It can be a supporting factor when other family problems are more serious and living with HIV does not interfere with family relationships. However, other families live on constant alert for fear of infecting someone, fear that other people will find out and limit relationships, causing family isolation. Conclusion: HIV in family relationships reveals the quality of these relationships prior to HIV, so that it brings out some changes that need to be addressed in order to promote the protagonism of its members.

KEYWORDS: Elderly; HIV/AIDS; family relationships.

RESUMEN

La mayoría de los estudios sobre el VIH/SIDA se centran principalmente en las personas que viven con el VIH, y hay pocos estudios sobre las relaciones familiares de estas personas. Objetivo: Analizar cómo se configura el VIH en las relaciones familiares de las personas que viven con VIH. Método: Estudio realizado en un Ambulatorio de Enfermedades Infecciosas de São Paulo/SP con 37 ancianos que viven con VIH y 19 familiares. Resultados: Muestran que el VIH en las relaciones familiares puede ser un factor de apoyo o determinante en dichas relaciones. Puede ser un factor de apoyo cuando otros problemas familiares son más graves y vivir con el VIH no interfiere en las relaciones familiares. Sin embargo, otras familias viven en constante alerta por miedo a contagiar a alguien, temor a que otras personas se enteren y limitan las relaciones, provocando aislamiento familiar. Conclusión: El VIH en las relaciones familiares revela la calidad de estas relaciones antes del VIH, de modo que pone de manifiesto algunos cambios que es necesario abordar para promover el protagonismo de sus miembros.

PALABRAS CLAVE: Ancianos; VIH/SIDA; relaciones familiares.

Recebido: 12/02/2023 Aprovado: 03/03/2025

Tipo de artigo: Artigo Original

INTRODUÇÃO

A literatura a respeito do HIV é imensa, em diversas áreas, temáticas e linguagens, porém, o mesmo não acontece quando se trata de falar especificamente das relações familiares de quem vive com HIV.1 

A vivência em família de uma pessoa com HIV ocasiona transformações que podem estar relacionadas à qualidade do funcionamento e da estrutura da família. Isso porque esse diagnóstico provocará mudanças de melhoria ou de piora das relações na dinâmica familiar.

Estas mudanças dependerão de vários fatores, como: qual familiar vive com HIV; a forma de infecção; quem sabe do diagnóstico; como ficou sabendo; como eram as relações antes do diagnóstico; se já existia algum familiar e/ou conhecido/amigo vivendo com HIV na família, entre outros.

Cada família movimenta-se de forma singular, interpretando a situação a partir de sua cultura, seus códigos e suas regras, que irão influenciar o comportamento e o processo de comunicação entre seus membros. (p. 1542)

A sociedade em que a família vive é norteadora para os comportamentos individuais, familiares e sociais de forma que, no seio familiar, a pessoa vivendo com HIV (PVHIV) pode ser discriminada e/ou excluída desta convivência, ou ir à procura de modos de enfrentamento e superação na tentativa de uma reestruturação frente à nova realidade de saúde e doença.3

É importante considerar o que chamamos de família, primeiramente entendemos que  

A família é o dispositivo social responsável pela reprodução, cuidado e educação, que implica na socialização das novas gerações nas três dimensões do ser humano: consciência, afetos e atividade. E como todo dispositivo social, tem prescrições sociais a seguir, como valores éticos e morais (solidariedade, respeito, entre outros). Estes serão estruturados de acordo com a forma como cada um irá lidar no cotidiano com os seus afetos, com as suas ações e com a sua consciência nesse espaço que é o primeiro espaço de pertencimento. (p. 2104)

Para Martín-Baró5 (p. 2, trad. nossa) “Os grupos elaboram as suas próprias normas de convivência a fim de que cada qual encontre a sua função social em um universo harmonioso”. E com isso

(...)assumiremos que a família tem relações dialógicas e contraditórias entre seus membros que podem desenvolver intimidade, educação, respeito, apoio e protagonismo. Contraditoriamente, estas mesmas relações podem gerar distanciamentos afetivos, descontruir potências e gerar sofrimento físico e psíquico, anular o protagonismo. As relações dialógicas e vinculares por si só não têm uma única qualidade e direção, mas são construções dinâmicas que sofrem as mais diversas influências (...) (p. 2134)

Entendemos que as famílias vivem em uma dialética entre construtividade e destrutividade, uma vez que podemos ter famílias construtivas no que diz respeito aos aspectos profissionais de um familiar e serem destrutivos no que diz respeito as suas relações afetivo-sexuais desta mesma pessoa.

A busca por relações construtivas não significa necessariamente um rompimento com a família biológica, pois o indivíduo pode não se sentir pertencente a sua família e pode romper com ela por meio de ações de distanciamento e com isso estabelecer vínculos com outras pessoas que passam a ser consideradas como sua família. No entanto, a família na qual o indivíduo foi criado e se desenvolveu não deixa de existir no seu processo simbólico e isso precisa ser integrado, caso contrário, sempre vai haver uma relação não resolvida, gerando sofrimento psíquico.

Segundo Silva, Villela-Neto, Silva e Carvalho6 as relações familiares são um dos fatores que influenciam na qualidade de vida da PVHIV. A família representa uma das mais importantes redes de apoio para quem vive com PVHIV7 juntamente com amigos, vizinho, relações com comunidade religiosa bem como relações grupais de ajuda. Em não havendo ou havendo parcialmente estas integrações a vivência do estigma social pode se tornar mais difícil que a própria vida com HIV8.

Na China, filhos de pais soropositivos tornavam-se os chefes da família, sendo obrigados a se afastar da escola e trabalhar por causa da difícil situação socioeconômica vivenciada por eles, além da questão de esses pais estarem impossibilitados de trabalhar e sustentar a família. Isto faz com que essas crianças adquiram maturidade o que não ocorre com crianças que não convivem com o HIV/Aids em seu seio familiar9.

Sousa, Kantorski e Bielemann10 afirmam que os comportamentos apresentados pela família sofrem influência dos significados de estigmatização envolvidos no HIV/Aids que foram construídos socialmente, os quais o grupo familiar pode agregar às suas crenças e valores formados ao longo de sua existência e, assim, disseminá-los no seio da família.

Chama-se estigma a limitação de um indivíduo a apenas uma categorização sem se levar em consideração a sua totalidade.

Um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possiblidade de atenção para outros atributos seus. Ele possui um estigma, uma característica diferente da que havíamos previsto. Nós e os que não se afastam negativamente das expectativas particulares em questão serão por mim chamados de normais. (p. 1411)

O estigma pode ser dirigido para uma única pessoa, como também uma família inteira pode se tornar estigmatizável/estigmatizada quando pensamos nas relações familiares vivendo com HIV.

O indivíduo acometido por uma doença não pode e nem deve ser visto unilateralmente, a sua constituição é global, portanto o sujeito doente deve ser visto em toda sua rede de relações. E esta visão não pode e nem deve ser diferenciada no caso do HIV/Aids10.

Contudo no caso da vida com HIV, socialmente ainda se tem a visão do HIV como predominante na vida do sujeito de modo a diminuir ou restringir o indivíduo ao HIV. Os avanços medicinais quanto ao HIV já permite falarmos sobre o HIV como uma doença crônica e não mais como uma sentença de morte, como se existia nos anos 80. Antes o HIV era preponderante na vida da pessoa de modo a ser restringida ao diagnóstico, mas com os avanços o HIV não tem mais esta roupagem e hoje é considerado uma doença crônica em que tomando as medicações conforme as prescrições médicas é possível alçar o nível do indetectável e, portanto, intransmissível. Porém socialmente ainda não se tem o mesmo avanço de modo que ainda é frequente a sociedade restringir a vida de uma pessoa que vive com HIV ao vírus e não em ver primeiro a pessoa em sua singularidade para em seguida ver que esta vive com uma doença crônica, tal qual a diabetes, hipertensão.

E no Brasil já temos alguns avanços importantes no tratamento antiretroviral e com isso se encaminhando para a finalização da Aids no Brasil. A UNAIDS12 (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids, em dezembro de 2024 parabenizou o Brasil por atingir mais uma meta. As metas colocadas era de ter até 2030 a meta de 95% das pessoas que vivem com HIV terem conhecimento da sua sorologia, 95% das pessoas diagnosticadas estarem em tratamento antiretroviral (TARV) e 95% das pessoas em tratamento serem indetectável e, portanto, intransmissível. Já atingimos as metas 1 (96%) e 3 (95%) e estamos a caminho de alçar a segunda meta (82%). Assim é importante ressalvar os avanços a quem vive com HIV, mas pouco se fala sobre as relações familiares destas pessoas que vivem com HIV.

Sousa, Kantorski e Bielemann10 (p. 4) fazem uma reflexão a respeito do adoecer como “manifestação intencional do corpo em um processo de movimentação da vida. É uma oportunidade de termos contato com o nosso corpo finito e isso enriquece nossa existência.”. Porém, de acordo com seus resultados, os familiares veem a situação de viver com HIV/Aids como sendo de difícil aceitação, pois não apresentam compatibilidade com os padrões sociais aceitos para o adoecer. Os familiares de quem vive com HIV/Aids não estão acometidos pela Aids, mas a vivência é de como se estivessem.

Estar com AIDS não é somente estar com uma doença incurável, como ocorre com o câncer, por exemplo; pois, além do real espectro que possui, essa doença ainda carrega consigo um estigma social muito grande. A sociedade não só tipifica a AIDS como letal e provocadora de sofrimentos que beiram o sobre-humano, mas também classifica seu portador de inconveniente, imoral ou alguém que apresenta um comportamento inaceitável socialmente, gerando nessa pessoa a crença de que realmente é inconveniente e inaceitável. (p. 40313)

E esse estigma não se aplica apenas à pessoa que vive com HIV, mas também aos seus familiares, que podem passar a ser vistos como pessoas passivas que “aceitam” essa relação e, possivelmente, até acobertem o familiar.

Conviver com um familiar com AIDS é ir para além das fronteiras físicas que a doença impõe, ou seja, é direcionar-se para um mundo invisível, carregado de conceitos e preconceitos a partir das representações dessa doença na vida das pessoas; é suscitar impressões positivas e negativas sobre a doença e a vida com AIDS; é aproximar-se e distanciar-se do portador de AIDS, da sociedade e da família. (p. 33014)

A descrição destes autores está especificamente direcionada a famílias e pessoas que já estão acometidas pela Aids, porém o mesmo pode ser inferido para a vivência com HIV. Os cuidados diários com a pessoa que vive com HIV também são de convivência familiar. Contudo, para algumas, pode-se acrescentar o peso do alerta constante, que significa estar sempre atento para ver se o familiar está tomando as medicações ou mesmo para eventuais machucados e assim não colocar outros em situação de vulnerabilidade. Mas também pode ser visto como cuidado ou falta de conhecimento quanto às formas de infecção.

Numa situação de saúde-doença deve-se analisar como essa família, em geral, se comporta nestes momentos, uma vez que a mesma pode “ser reconhecida como uma unidade de saúde” e com isso ser um ponto de apoio, auxílio e ajuda para a pessoa que vive com HIV cumprindo seu papel familiar de cuidado11. Uma das formas de apoio e ajuda nesta vivência é o cuidar.

Cuidar não significa somente satisfazer às necessidades fisiológicas básicas de um ser humano, mas inclui dar apoio, conviver, escutar, entender o outro, além de diversas outras formas de demonstrar os sentimentos pela pessoa que está recebendo cuidados. (p. 40413)

Em pesquisa realizada por Botti et al.13 com sete familiares, foi constatado que as mulheres, em geral, é que assumem os cuidados para com o familiar, frequentemente sem nenhum apoio extra, e com isso “buscam forças internas superiores às possibilidades. Há que se ressaltar que o cuidado geralmente é percebido como parte integrante e natural da vida feminina.” (p. 404). Essas mulheres estão cumprindo seus papéis de gênero de cuidadoras, como vimos anteriormente.

Vale destacar que o momento do diagnóstico do HIV+ de um familiar é desencadeador de sentimentos e comportamentos semelhantes pelos quais passam todos que ficam sabendo do diagnóstico. Estes dizem respeito à tristeza, angústia, sentimento de desamparo, por vezes com comportamentos e pensamentos desorganizados, em que não se sabe como agir, apresenta-se depressão e isolamento. Os mecanismos de enfrentamento também passam a ser os mesmos, como silêncio, negação, segredo do diagnóstico15,16,17,18.

Darling, Olmstead e Tiggleman19 são claros ao afirmar que as pessoas que vivem com HIV/Aids e que têm uma boa estrutura familiar e aprendizados para o enfrentamento dessa situação, foram capazes de obter maior nível de satisfação de vida em relação às pessoas que têm um nível familiar pobre e com pouco ou nenhum aprendizado.

Em pesquisa realizada por Almeida-Cruz et. al.20 com jovens que vivem com HIV apresentou que uma relação familiar positiva está associado a sentimentos de felicidade e  melhor qualidade de vida destes.

Pimentel et al.21 e Souza et al.22 analisaram como as relações familiares podem estar relacionadas a diminuição do estigma e do preconceito com o HIV e chegaram aos resultados de que mesmo com o sentimento de medo a PVHIV encontra na família uma rede de apoio.

Podemos relacionar estes dados com as famílias construtivas e destrutivas, sendo que as famílias construtivas apresentam uma boa estrutura familiar e aprendizados que auxiliam o enfrentamento da vida com HIV juntamente com a PVHIV, enquanto as famílias destrutivas não auxiliam a vida com HIV.

O HIV no seio familiar pode ser determinante das relações familiares ocasionando

afastamentos, discriminações ou mesmo defesas para não sofrer represálias. Neste aspecto, o grupo intrafamiliar formado pelos familiares que têm conhecimento da soropositividade pauta seus comportamentos nos dos demais familiares que não têm conhecimento, de forma a zelar para que ninguém mais saiba do diagnóstico. Se este é um fator determinante das relações familiares, eles ocasionam uma relação familiar destrutiva ao passo que se o HIV se torna coadjuvante das relações, estas se configuram como construtivas.

De outro lado, o diagnóstico de HIV pode ser coadjuvante das relações familiares,

uma vez que as problemáticas familiares sofridas antes ou depois da soropositividade são maiores que a vida com HIV.

O morar sozinho na vivência com HIV pode se tornar inevitável frente ao movimento de afastamento de familiares e amigos 17, pois conviver nessa realidade pode implicar comportamentos de cuidados para a não infecção, como também diálogos a respeito de práticas e preferências sexuais ou de uso de drogas que nem sempre são assuntos fáceis de se abordado em família. Essa rejeição familiar pode ser um complicador no enfrentamento da vida com HIV resultando em diminuição da qualidade de vida destas e dificulta na adesão ao tratamento.21

Pesquisa realizada por Costa, Medeiros, Paungartner, Luft, Santos, Paiva e Fernandes22 sobre os fatores psicossociais envolvidos na adesão ao tratamento aponta a importância do suporte emocional, em geral, realizadas pela família influencia no processo de adesão a TARV.

OBJETIVO

Com isso este artigo tem por objetivo discutir como o diagnóstico de HIV configura as relações familiares.

MÉTODO

Esse artigo é um recorte da Tese de doutorado, intitulada “Configurações familiares de idosos que vivem com HIV/Aids”, defendida, na PUC/SP, pela primeira autora em 2017 e orientada pela segunda autora. Desta pesquisa participaram 37 idosos, 25 homens e 12 mulheres, na faixa etária de 60 a 82 anos, além de 19 familiares, 15 mulheres e 4 homens, na faixa etária de 16 a 79 anos.

Destes 37 idosos que vivem com HIV/Aids participantes da pesquisa, com 16 destes conseguimos conversar com pelo menos um familiar perfazendo a análise familiar de 16 famílias. Três destes idosos nos permitiram conversar com mais de um familiar. As configurações familiares foram de oito famílias na parentalidade, duas na conjugalidade,  duas de fraternidade, duas entre tio e sobrinha; uma família com configuração geracional em que eram avô e neto; e uma família entre primos.

A análise da pesquisa foi realizada com quatro núcleos de significado, sendo estas padrão familiar; sexualidade; HIV nas relações familiares e segredo. Para este artigo foi realizado o recorte sobre o HIV nas relações familiares. E para cada família selecionamos um título que está relacionado com as vivências familiares.

Esta pesquisa foi realizada no Ambulatório de Infectologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Centro de Controle de Doenças Infectocontagiosas (CCDI) na implantação do “Ambulatório de HIV e o Envelhecer” que tem como  objetivo atendimento especializado para os idosos vivendo com HIV. A mesma é um subprojeto da pesquisa “Relações de gênero e Itinerário Terapêutico: a transversalidade com a adesão ao autocuidado em saúde”, pesquisa essa autorizada pelo comitê de ética em pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, com sede no campus Monte Alegre, sob o protocolo de pesquisa nº 351/2010.

RESULTADOS

Neste item as famílias foram divididas entre o viver com HIV ser coadjuvante e/ou determinante das relações familiares. O primeiro grupo – coadjuvante – é composto por 12 família, sendo estas: 1, “Mulheres unidas”; 2, “Eu vivo para morrer”; 3, “Minha filha que cuida de tudo”; 4, “Entre nós três, a nossa família é unida”; 5, “Meu filho me conhece”; 9, “A relação marido e mulher acabou, mas a familiar continua”; 10, “Troca de cuidados”; 12, “Somos o Anjo da Guarda um do outro”; 13, “Eu sou muito conhecido”; 14, “Não tenho com quem conversar”; 15, “Melhores amigos”; e 16, “Uma relação entre pai e filho é o que melhor nos define”.

E as famílias em que o HIV é determinante das relações familiares foram 4  famílias: 6, “Minha família extensa é preconceituosa”; 7, “As sofredoras”; 8, “Unidos venceremos”; e 11, “Vivemos em alerta constante”.

Para a discussão dos resultados serão utilizadas duas famílias representando cada uma das configurações de como o HIV se configura nas relações familiares.

DISCUSSÃO

Iniciamos a nossa discussão analisando uma família em que o HIV se mostra coadjuvante. A família 1, “Mulheres unidas”, Alice (Idosa que vive com HIV) e Marcela (Filha de Alice), é uma família dominada pelas mulheres, de forma que os comportamentos de cuidado se mostram alinhados ao hegemônico, sendo um desdobramento do papel de gênero.23 

Nesta família, o cuidado é suporte mútuo e mediador das relações. Este cuidado também pode significar poder e prestígio, pois Marcela nos conta que fica sabendo tudo o que acontece com seus filhos, neto e mãe, pois ela assumiu o papel de centralizadora da família.

Marcela fala para os filhos homens se cuidarem, reforçando a ideia do masculino como ativo sexualmente 24,25. Porém, este cuidado é uma prevenção disfarçada, na medida em que é apenas com intuito de evitar a gravidez e não como um autocuidado com a saúde. Neste aspecto vemos que a família não é reconhecida como uma unidade de saúde, como nos falam Cardoso, Marcon e Waidan14.

E, neste aspecto, Alice falhou em seu autocuidado com a saúde e hoje vive com HIV. Marcela também falha ao ter a sua sexualidade ligada a fantasias e ao amor romântico, confiando no parceiro, pela profissão que ele tem. E Marcela, pelo fato de sua mãe ter falhado no autocuidado, assume o cuidado familiar, mas também parece falhar ao disseminar formas de prevenção para os filhos apenas para evitar a gravidez.

Alice vive uma contradição ao falar de prevenção com seus netos, uma vez que não revela seu diagnóstico a eles. Ela convive com uma doença que, para a sociedade, torna a quem vive com a mesma pessoas sem muito valor.

Vemos que é uma família cuidadora no sentido de apoio, suporte, escuta, convivência, como nos fala Botti et al.13, mas quanto aos cuidados de prevenção, é falha.

Uma das mudanças ocorridas nesta família foi quanto aos cuidados familiares de Alice com Marcela, fato que Alice não percebe. Não identificar alterações familiares pode estar relacionado tanto ao tempo de vivência com HIV, que pode ocasionar a naturalização da convivência com a soropositividade e, desse modo, fazer com que se esqueça de como foi no começo, quanto ao fato de só as pessoas de sua confiança, suas filhas, terem conhecimento de seu diagnóstico.

Mesmo o HIV sendo um segredo entre Alice e suas duas filhas mulheres, isto não as impede de seguir com as relações familiares, embora tenham medo de falar para os demais familiares e de sofrerem preconceito e discriminações. O HIV se mostra como coadjuvante, pois a família tem outros problemas, tais como financeiros que se mostram maiores que a vida com HIV de Alice.

O HIV é determinante para a família 8, “Unidos venceremos”, Marcos (Idoso que vive com HIV), Márcia (Filha de Marcos), Conceição (Esposa sorodiscordante de Marcos) e Joaquim (Neto de Marco), o HIV é determinante e, portanto, negativo na relação familiar, principalmente para Conceição, a esposa, pois ela sempre se lembra da raiva que tem do marido e isto determina os seus comportamentos. Já por parte de Márcia e Joaquim, o HIV mostra-se coadjuvante, pois não interfere nos papéis de pai e avô para estes.

Uma das formas que Conceição encontrou para extravasar a sua raiva pelos comportamentos do marido e por não se separar legalmente dele, é separar as roupas dele na hora de lavar (Mesmo sabendo que não é uma forma de transmissão do HIV).

Mas o controle da raiva é diário nesta relação por parte de Conceição e compartilhada com a filha caçula, que mora com eles.

Para Conceição, Marcos se mostra de uma forma para a família, e o fato de o seu diagnóstico de HIV revelar seus comportamentos de liberdade sexual são revoltantes não apenas para ela, como vimos, mas também para os filhos, principalmente para o  primogênito e a caçula.

Em todas as falas de Conceição notamos a sua raiva em relação ao marido e isto corrobora com Gorinchteyn26, quando este afirma que o HIV, no seio familiar, ocasiona mágoas a serem revividas, ausências a serem cobradas, raiva a ser expressa. A Aids é catalisadora de emoções nunca ditas e, finalmente, afloradas. Confirma-se também o abordado por Cardoso, Marcon e Waidman14, de que a convivência vai além das fronteiras físicas que a doença impõe.

Conceição continua cumprindo seu papel hegemônico feminino de cuidado, mas sem poder expressar sua raiva, o que aliviaria sua vivência. Oficinas educativas e de acolhimento poderiam ser eficazes para trabalhar suas angústias, raivas e tristezas pela relação conjugal e familiar27.

Com Conceição, confirmamos também o que Botti et al.13 afirma: “nas expressões utilizadas, os cuidadores mostram a manifestação viva do ser-família, em que o vínculo existente entre seus membros não lhes permite simplesmente abandonar, como fazem outras pessoas.” (p. 402)

Para Márcia, sua filha, e Joaquim, seu neto, o HIV não interferiu em seu papel paterno e geracional.

Para Márcia e Joaquim, como o pai cumpriu seu papel hegemônico masculino de atividade sexual, isto não interferiu em seu papel paterno, uma vez que o HIV não fez aflorar nenhuma raiva destes em relação a Marcos.

CONCLUSÃO

Finalizando, vemos que o HIV se configura como coadjuvante das relações familiares quando as demais problemáticas da família se tornam maiores que a vida com HIV, tais como problemáticas financeiras, com algum tipo de vício, como o alcoolismo ou também pós AVC (Acidente Vascular Cerebral). Para as famílias em que esta vivência é determinante, o pesado é a vida com HIV e todos que detêm o conhecimento vivem em alerta constante para não contar a mais ninguém, como também mostra-se o afloramento de relações desqualificadas que já se tinha nas relações familiares antes do HIV.

REFERÊNCIAS:

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25GROSSI M Masculinidades: uma revisão teórica. Rev Antropologia em primeira mão. 2004, Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Programa de Pós-graduação em Antropologia social.

26GORINCHTEYN J. Sexo e aids depois dos 50. São Paulo: Ícone; 2010.

27LAZZAROTTO AR, SANTOS VS, REICHERT MT, QUEVEDO DM, FOSSATTI P, SANTOS GA, et al. Oficinas educativas sobre HIV/Aids: uma proposta de intervenção para idosos. Rev. Bras. Gerontol., 2013, Rio de Janeiro, v.16, n.4, p.833-843.