UMA ANÁLISE SOBRE TRABALHO E ADOECIMENTO FEMININO

AN ANALYSIS OF WOMEN'S WORK AND ILLNESS

ANÁLISIS SOBRE EL TRABAJO Y EL PADECIMIENTO FEMENINO

Autores:

Michella Paula Cechinel Reis

Enfermeira graduada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, mestre em Ciências da Saúde pela Fiocruz/RJ, pós-graduação

em psicologia analítica e psicossomática pelo Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa.

ORCID: https://orcid.org/0009-002-0199-3967

Jane Aline Souza Bastos

Bacharel em jornalismo em multimeios (Universidade Estadual da Bahia), especialista em marketing, pós-graduada em Gestão Pública.

ORCID: https://orcid.org/0009-0008-5369-1948

Carla Sabrina Antloga

Psicóloga, Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, com estágio técnico no Conservatoire d'Arts et Métiers, Paris. Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações, com ênfase em Qualidade de Vida no Trabalho (PSTO-UnB).

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4105-6708

RESUMO

Este artigo analisa a relação entre a sobrecarga de trabalho e o adoecimento das mulheres, argumentando que a divisão desigual do trabalho, somando os trabalhos remunerado e não remunerado, contribui significativamente para o desgaste físico e emocional feminino. Utilizou-se dados estatísticos para demonstrar a sobrecarga de trabalho e o maior adoecimento físico e psicológico das mulheres. A pesquisa evidencia que, embora as mulheres cuidem mais da própria saúde, recorrendo com maior frequência a serviços médicos, elas apresentam índices superiores de doenças crônicas, transtornos de ansiedade e depressão quando comparadas aos homens. O texto discute a invisibilização do trabalho doméstico e sua contribuição para a desigualdade de gênero, além da necessidade de políticas públicas mais abrangentes para a saúde integral da mulher. Proposta de ressignificação do trabalho de cuidado, sugerindo modelo mais equitativo e sustentável, que valorize e redistribua essas responsabilidades, promovendo maior justiça social e bem-estar para as mulheres.

DESCRITORES: Adoecimento das mulheres; Sobrecarga de trabalho feminino.

ABSTRACT

This article analyzes the relationship between work overload and women's health deterioration, arguing that the unequal division of labor---combining paid and unpaid work---significantly contributes to women's physical and emotional strain. Statistical data were used to demonstrate the work overload and the higher prevalence of physical and psychological illness among women. The research highlights that, although women take better care of their health and seek medical services more frequently, they exhibit higher rates of chronic diseases, anxiety disorders, and depression compared to men. The text discusses the invisibility of domestic work and its contribution to gender inequality, as well as the need for more comprehensive public policies to support women's overall health. It proposes a redefinition of care work, suggesting a more equitable and sustainable model that values and redistributes these responsibilities, promoting greater social justice and well-being for women.

DESCRIPTORS: Women's Health Deterioration; Female Work Overload.

RESUMEN:

Este artículo analiza la relación entre la sobrecarga laboral y el deterioro de la salud de las mujeres, argumentando que la división desigual del trabajo, que combina el trabajo remunerado y no remunerado, contribuye significativamente al desgaste físico y emocional femenino. Se utilizaron datos estadísticos para demostrar la sobrecarga laboral y la mayor prevalencia de enfermedades físicas y psicológicas en las mujeres. La investigación destaca que, aunque las mujeres cuidan más de su salud y acuden con mayor frecuencia a los servicios médicos, presentan índices más altos de enfermedades crónicas, trastornos de ansiedad y depresión en comparación con los hombres. El texto aborda la invisibilización del trabajo doméstico y su contribución a la desigualdad de género, además de la necesidad de políticas públicas más integrales para la salud de las mujeres. Se propone una resignificación del trabajo de cuidados, sugiriendo un modelo más equitativo y sostenible que valore y redistribuya estas responsabilidades, promoviendo una mayor justicia social y bienestar para las mujeres.

DESCRIPTORES: Enfermedad de la mujer; Sobrecarga de trabajo femenino.

Recebido: 19/02/2025 Aprovado: 05/03/2025

Tipo de artigo: Artigo Original

INTRODUÇÃO

A sobrecarga de trabalho está adoecendo as mulheres. Existe um consenso quando se discute a saúde feminina de que as mulheres buscam mais os profissionais e serviços de saúde que os homens, como demonstrado pela Pesquisa Nacional de Saúde (1). Entre as hipóteses, a busca pelo atendimento seria um sinal de autocuidado e preocupações com sua saúde e de sua família, essa demanda é consequência de um adoecimento maior apresentado pelas mulheres brasileiras, que pode se relacionar a sobrecarregada de trabalho, incluindo o de cuidado, que não as permite pensar em morrer. Esse maior adoecimento, fruto da sobrecarga de trabalho feminino e maiores demandas impostas pela cultura e sociedade, podemos considerar precoce em relação aos homens. Essas questões nos inquietam como mulheres e trabalhadoras, pois em nossa vivência cotidiana, o cansaço e a sensação de sobrecarrega nos acompanha, e em consequência, mais chances de apresentarmos acometimentos de saúde, seja física ou psicoemocional.

O trabalho é aquilo que implica, do ponto de vista humano, o fato de trabalhar: gestos, saber-fazer, um engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir às situações; é o poder de sentir, de pensar e inventar (2). Ou seja, o trabalho nos mobiliza por inteiro, corpo, mente, emoções, composto de muitas camadas de subjetividades, e vai além das horas trabalhadas acordadas em contrato; ele mobiliza a pessoa por completo.

Segundo Dejours (2), o trabalho não é somente o produzir, também engloba o transformar a si mesmo(a) e, no melhor dos casos, é uma ocasião oferecida à subjetividade para se testar, e até mesmo se realizar. O autor ainda destaca que a organização do trabalho, de gestão e administração na contemporaneidade sacrifica a subjetividade humana em prol da rentabilidade e competitividade, gerando comportamentos individualizados e o apelo à concorrência generalizada. O resultado disso tudo é o adoecimento, surgimento de novas patologias, aumento das taxas de suicídio, violência no trabalho, sobrecarga e explosão de patologias de assédio. As pessoas adoecem porque o sistema está doente, corrompido pela ideia de lucro exacerbado e isolamento das pessoas.

Políticas públicas e programas de saúde da mulher são direcionadas à vida reprodutiva, relacionadas à maternidade, sexualidade e prevenção de câncer de colo de útero e mama. A saúde integral da mulher ainda é uma meta a ser alcançada. Mesmo programas que deveriam ser mais integrativos e servir de porta de entrada do Sistema Único de Saúde, como a Estratégia de Saúde da Família e a Atenção Básica, ainda não atingem as necessidades de cuidados de saúde feminina em sua diversidade. E mesmo os que defendem a universalização e perspectivas de direitos acabam por propor ações imediatas (curto prazo), que incluem a mulher em situação de risco (3).

O Sistema Público de Saúde enfrenta muitas dificuldades, principalmente com a incorporação tecnológica e aumento de custos de saúde, faltam recursos para todas as demandas e a proposta de atendimento universal não está completamente implementada. Soma-se a isso, o envelhecimento populacional aumenta as demandas por média e alta complexidade, com custos mais elevados (4). As ações em saúde para a população feminina não podem ficar a cargo apenas de iniciativas do governo federal, precisa da mobilização dos movimentos sociais, grupos de mulheres em diferentes âmbitos geopolíticos, com foco regionalizado entendendo as diferentes realidades vivenciadas pelas mulheres em um país continental como o Brasil.

Para atender as questões que nos mobilizam propomos como objetivo apresentar a situação de saúde da mulher brasileira e sua relação com a sobrecarga de trabalho, utilizando dados secundários de fontes oficiais e revisão bibliográfica para respaldo e ampliações. Em resumo, nossa hipótese é de que as mulheres trabalham e adoecem mais que os homens ao longo da vida, em consequência do desequilíbrio das relações socioculturais, trabalho e afetivas vivenciadas pelas mulheres contemporâneas.

MÉTODO

O presente estudo adota uma abordagem metodológica baseada em pesquisa documental e revisão de literatura. Entre as pesquisas utilizadas na análise de dados, os Censos Demográficos, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua em suas diferentes versões (trimestral e anual), entre outras, fundamentaram o tema trabalho. As informações de saúde foram baseadas na Pesquisa Nacional de Saúde (2019), realizada pelo IBGE em parceria com o Ministério da Saúde, sendo um dos maiores inquéritos realizados no país e abrangendo diferentes temas, garantindo a confiabilidade das informações. Relatórios do Ministério da Saúde e do Trabalho e Emprego também foram utilizados. Todas as bases são de domínio público com dados agregados e sem identificação das pessoas, portanto, segundo a Resolução CNS n.º 510, de 2016, artigo 2.º (5).

Paralelamente, a revisão de literatura foi conduzida com o objetivo de contextualizar o tema e aprofundar a compreensão teórica, utilizando referenciais acadêmicos e estudos prévios sobre o adoecimento das mulheres residentes no Brasil e a sobrecarga de trabalho feminina. A análise dos dados seguiu uma abordagem quantitativa, permitindo uma interpretação crítica e embasada dos achados.

RESULTADOS

Parte 1: Mulheres e sobrecarga de trabalho

Na década de 1970 houve um aumento expressivo da participação da mulher no mercado de trabalho. Na busca pela redução da jornada de trabalho dentro de casa, algumas inovações ocorreram nesse período, mas nenhuma foi mais impactante que a invenção e produção de pílulas anticoncepcionais, que permitiu que as mulheres buscassem pela diminuição do trabalho através da redução do número de filhos. Em consequência disso, países em todo mundo estão em franco processo de envelhecimento e a produção de novas tecnologias estão sendo direcionadas a esse público-alvo (6). Ou seja, a busca feminina por mudanças está mudando a lógica das relações econômicas, produtivas e reprodutivas globalmente.

As mulheres sempre trabalharam muito, o acesso ao mercado de trabalho remunerado acentuou a situação. Os empregadores achavam mais fácil fazer com que as mulheres suportassem melhor o excesso de trabalho que os homens. No período da revolução industrial elas trabalhavam mais e recebiam menos chegando à proporção de 5 horas de trabalho de uma mulher para cada hora de trabalho de um homem; atualmente essa proporção passou a ser de duas horas para uma, considerando as atividades domésticas (7).

Análise dos dados dos censos demográficos registram o aumento da inserção das mulheres no mercado de trabalho brasileiro e sua relevância para a população economicamente ativa ganham força entre as décadas de 1950 e 1960, com aumento de 61,7% das mulheres economicamente ativas, ocupadas principalmente no setor de serviços, subindo de 2,5 milhões para 4 milhões de mulheres entre as duas décadas (8). Com um incremento entre 1960 e 1970 de 51,8%, subindo para um total de 6,1 milhões de brasileiras no mercado de trabalho (8). E assim, progressivamente, as mulheres foram se inserindo no mundo laboral, chegando a 48,1 milhões de mulheres ocupadas em 2024, representando 58,2% das mulheres de 14 anos ou mais (idade para trabalhar), segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - no terceiro trimestre de 2024 (9).

No Brasil, o total de pessoas ocupadas assalariadas nas empresas era de 50,2 milhões de pessoas, sendo 22,7 milhões mulheres (45,2% do total). Os grupos de atividades que mais empregam as mulheres são a administração pública, defesa e seguridade social (19,77%), comércio (18,68%), saúde humana e serviços sociais (11,22%), indústria de transformação (10,7%), educação (10,13%) e atividades administrativas e serviços complementares (9,95%). Já os homens estão mais presentes na indústria da transformação (20,08%), comércio (19,23%), administração pública, defesa e seguridade social (12,28%), atividades administrativas e serviços complementares (10,74%) e transporte, armazenagem e correio (7,44%). Nas empresas, os homens recebem em média 3,1 salários mínimos, enquanto as mulheres recebem 2,7 salários mínimos (10).

Os dados mostram que as mulheres estão ocupando espaços no mercado de trabalho que antes eram majoritariamente masculinos, abrindo o leque de possibilidades para as gerações futuras. Entretanto, o trabalho doméstico e cuidado de pessoas, que incluem crianças, idosos ou pessoas doentes, ainda recaem mais nos ombros femininos (92,1% das mulheres e 80,8% dos homens realizam essas atividades), em uma média de horas superior, independente de estar trabalhando ou não fora de casa, como podemos observar no gráfico abaixo (11).

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua.

Pesquisas sobre o uso do tempo realizadas pela Organização Internacional do Trabalho em 64 países, apontam que o tempo dedicado ao trabalho de cuidado não remunerado no mundo chega a 16,4 bilhões de horas por dia, deste total 76,2% são realizados por mulheres, o equivalente a 2 bilhões de pessoas trabalhando 40 horas por semana num trabalho não remunerado (12). Mundialmente, os homens gastam em média 83 (1h23min) minutos por dia em trabalhos de cuidado e não remunerados enquanto as mulheres dedicam 265 minutos (4h25min). Em um ano, considerando a jornada de trabalho de 8h diárias, esses dados significam 201 dias trabalhados por mulheres e 63 trabalhados por homens (12).

No Brasil, o Ministério do Trabalho e Emprego evidencia bem a questão de gênero envolvida no trabalho. Do total de acidentes de trabalho relatados pelo MTE entre 2021 e 2023, 64,2% ocorreram com homens e 35,1% com mulheres. Entre os motivos relatados para os homens para o acidente/adoecimento: fatores típicos ou de trajeto são percentualmente; já as doenças do trabalho apresentam frequência relativa superior para as mulheres. A maior quantidade de acidentes de trabalho, interseccionado com a Classificação Brasileira de Ocupação, era para os trabalhadores de serviços, que incluíam os trabalhadores domésticos. É interessante que uma grande massa de trabalhadores não entra nessas estatísticas, como trabalhadores informais, que incluem empregadas domésticas sem vínculo formal, e o trabalho doméstico não remunerado.

As mulheres começam a trabalhar antes dos homens, independente de essa relação de trabalho ser remunerada ou não. Dentre as evidências podemos destacar que um total de 38,3 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos residentes no país executaram atividades laborais em 2023, sendo a distribuição percentual por sexo: 51,2% eram homens e 48,8% eram mulheres (13). Entretanto, quando observamos os dados sobre o trabalho doméstico e cuidado de pessoas da família, a taxa de realização das mulheres é superior à dos homens, independentemente da idade. Mulheres possuem taxas que variam entre 87,4% na faixa etária de 14 a 24 anos, 95,8% na faixa de 25 a 49 anos e 89,7% para mulheres com 50 anos ou mais de idade (13). O que nos leva a concluir que as mulheres, mesmo quando em condições de trabalho precoce, atuam mais em atividades de cuidado da família e da casa, em contrapartida, os homens desde jovens já atuam em atividades remuneradas, preferencialmente.

Parte 2: Impactos emocionais e o adoecimento das mulheres

Os impactos emocionais das expectativas e cobranças impostas às mulheres em relação ao trabalho de cuidado e doméstico são profundos e multifacetados. O trabalho produtivo é o centro da vida dos homens, enquanto as mulheres vivem uma tentativa de equilibrar e mediar o duelo entre o trabalho produtivo e o reprodutivo, como protagonistas da sua agenda (14). A invisibilidade desse trabalho e a falta de reconhecimento frequentemente levam a sentimentos de desvalorização e baixa autoestima. Quando essas atividades não são vistas como trabalho legítimo, mas como um "dever natural" das mulheres, elas podem internalizar a ideia de que sua contribuição para a família e a sociedade tem menos importância.

Análises de dados revelam dinâmicas familiares prejudiciais às mulheres, por exemplo, homens que dependem do dinheiro de suas esposas compensam esse desequilíbrio da relação, no que se refere à masculinidade, fazendo menos atividades domésticas; da mesma forma mulheres que trabalham em horário integral fazem mais atividades domésticas quando o marido ou companheiro ficam desempregados e quando a mulher ganha mais e o marido trabalha menos, a divisão de tarefas é ainda mais desigual, com estas mulheres fazendo mais atividades domésticas que seus companheiros (15).

Além disso, a sobrecarga emocional de atender constantemente às necessidades dos outros pode gerar exaustão mental e física. O fenômeno conhecido como *burnout do cuidado* é comum entre mulheres que acumulam responsabilidades domésticas, profissionais e emocionais sem contar com o apoio adequado. Esse estado de esgotamento pode resultar em ansiedade, irritabilidade, depressão e até mesmo em problemas de saúde física, como insônia e dores crônicas.

A título de exemplo, é interessante notar que a incidência de doenças autoimunes é superior para o sexo feminino em todo mundo. Estima-se que as doenças autoimunes afetam 3% da população mundial e resultam na falha pelo organismo em sustentar tolerância às suas próprias moléculas em decorrência de fatores que incluem variantes como a genética, condição hormonal, exposição a xenobióticos, patógenos, variáveis epigenéticas -- relação da interação dos fatores genéticos com os fatores ambientais, dieta e estresse (16). Segundo esse estudo, as mulheres são mais suscetíveis às doenças autoimunes, como a artrite reumatoide ou o câncer, devido às variações hormonais, entretanto, o estresse é uma variável de grande importância, que poderíamos supor ser resultado de todas as sobrecargas que a mulher é submetida ao longo da vida.

Ramos (17), reforça o argumento em sua pesquisa, mulheres diagnosticadas com artrite reumatoide foram associadas a uma relação obsessiva e hiperativa com o trabalho, principalmente o doméstico. Esse resultado pode ser uma reação à baixa valorização que se dá ao trabalho doméstico. Trazendo um olhar mais simbólico para essa situação exemplificada, a mulher em sua trajetória, internaliza a culpa, a raiva, o desespero, entre outras emoções, que muitas vezes não são admitidas ou não podem ser nomeadas. Os resultados são sentidos por cada célula.

Dados do observatório de Saúde Pública(18) mostram que as internações hospitalares relacionadas ao transtorno de ansiedade, em 2024, foram duas vezes maiores para as mulheres (67,2%) em relação aos homens (32,8%), atingindo em especial, mulheres mais jovens entre 25 e 34 anos e mulheres que se identificam como pardas.

A Pesquisa Nacional de Saúde (1), inquérito de saúde realizado pelo órgão de estatística em todo território nacional, as mulheres relataram estar mais doentes que os homens. No Brasil, entre as doenças crônicas informadas por pessoas de 18 anos ou mais de idade, um total de 22,3 milhões de mulheres foram diagnosticadas com hipertensão arterial (26,4% do total de mulheres), acima dos 21,1% dos homens diagnosticados. O mesmo ocorre com as mulheres diagnosticadas com diabete, com um total de 7,1 milhões (8,4%), já os homens com um total de 5,1 milhões diagnosticados (6,9%).

Os dados não param por aí, as mulheres apresentaram maiores percentuais de diagnósticos de colesterol alto, asma, problema crônico de coluna, diagnósticos de câncer, insuficiência renal crônica, com destaque para depressão que chega a ser três vezes maior que dos homens (Gráfico 1).

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional de Saúde, 2019.

Em 2012, a maior parte das mortes evitáveis em mulheres de 5 a 74 anos (74,1%) estava relacionada às doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), enquanto que, em 2021, esse percentual reduziu para 45,5%, porém permanecendo como o grupo mais importante de causas evitáveis. Das 149 mil mortes por causas evitáveis relacionadas às DCNT registradas em 2021, a maioria foi causada por neoplasias (31,1%), seguidas das doenças isquêmicas do coração (15,3%), doenças cerebrovasculares (14,4%) e diabete mellitus (13,5%). Entre as doenças infecciosas, destacam-se as infecções respiratórias, incluindo a pneumonia, a influenza e a covid-19 (39,1% das causas evitáveis em 2021), bem como a doença pelo vírus da imunodeficiência humana - aids (11,9%) (19).

A morbimortalidade por DCNT é maior entre pessoas socialmente vulneráveis ou desfavorecidas do que entre aquelas com posições sociais mais altas. Essa desigualdade se deve à exposição diferencial a produtos nocivos, como tabaco, e a práticas alimentares pouco saudáveis, além da disparidade no acesso aos serviços de saúde. Observa-se que a taxa de mortalidade prematura entre as mulheres não é a mesma quando se introduz a variável cor/raça. Mulheres pretas, pardas e indígenas tiveram aumento dessa taxa no período analisado de 2000 a 2020. "No Brasil, as mulheres negras apresentaram duas vezes mais risco de morte que as mulheres brancas. Resquícios de uma sociedade escravocrata, o racismo estrutural ainda é latente, resultando em uma população negra com escolaridade mais baixa, piores condições de trabalho e alta vulnerabilidade social" (19).

Estima-se que 12,7% das mulheres apresentam consumo abusivo de álcool, abaixo dos 25% dos homens brasileiros; 6,7% das mulheres são fumantes, enquanto 11,8% dos homens são fumantes. Mulheres também consomem regularmente mais frutas e hortaliças que os homens (41%, 26,2%, respectivamente), sendo considerado um fator de proteção para as DCNT. As mulheres possuíam percentuais maiores de obesidade e menor prevalência de prática de atividade física que os homens, em especial, para mulheres pretas e pardas (19).

Soma-se a isso, mulheres são mais vítimas de violências variadas, sendo mais um fator de risco para o seu adoecimento psicofísico. A Pesquisa Nacional de Saúde (1), mostrou que 16,4 milhões de mulheres brasileiras adultas foram vítimas de alguma forma de violência física, psicológica ou sexual, representando 19,4% dessa população, em comparação a 17% da população masculina. A prevalência de violências sexuais contra mulheres (na vida) foi 3,6 vezes maior que a prevalência entre homens.

Estudo da Organização Mundial de Saúde (20) sobre a Saúde Mental aponta que a prevalência de desordens mentais no mundo afeta 970 milhões de pessoas, em especial as mulheres (52,4% dos casos). Os transtornos depressivos e de ansiedade são cerca de 50% mais comuns entre as mulheres do que entre os homens ao longo da vida, com destaque para o período da gravidez e parto. Em todo o mundo, mais de 10% das mulheres grávidas e puérperas experimentam depressão, principalmente, em países de baixa e média renda, estima-se que essa porcentagem seja significativamente maior. Soma-se a isso, mulheres que sofreram violência por parte de parceiros íntimos ou violência sexual são particularmente vulneráveis ao desenvolvimento de transtornos mentais, com associações significativas entre a vitimização e a depressão, ansiedade, condições de estresse, incluindo TEPT (transtorno de estresse pós-traumático), e ideação suicida. Mulheres vivendo com transtornos mentais graves têm uma probabilidade muito maior de terem experimentado violência doméstica e sexual ao longo da vida em comparação com outras mulheres.

Cruzando as informações entre os diferentes estudos, observa-se que as mulheres, apesar de cuidarem mais da saúde, mediante práticas mais saudáveis (alimentação) e menor consumo de álcool/tabaco, mostram-se mais doentes que os homens, especialmente, as mulheres negras, pardas e indígenas, mais vulneráveis socioeconomicamente. O que corrobora que aspectos biológicos são insuficientes para justificar as diferenças, e sim determinantes sociais, como dupla ou tripla jornada de trabalho, dificuldade de acesso a serviços, maior exposição às violências psicológicas, financeiras e sexuais que os homens, pressões por desempenho no trabalho e em casa, desvalorização e não reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho, sendo relacionado a condição de ser mulher. Como não adoecer diante de tantas exigências e, ao mesmo tempo, barreiras que precisam ser transpostas pelo feminino de forma coletiva?

DISCUSSÃO

Reflexões sobre a mulher, trabalho e saúde

A primeira experiência de trabalho de muitas mulheres acontece muito antes delas entrarem formalmente no mercado de trabalho. Frequentemente em casa, no ambiente doméstico, quando desempenham atividades de cuidado que, historicamente, não são reconhecidas como "trabalho". Federici (6) comenta que o trabalho doméstico não assalariado tem dado a essa condição socialmente imposta uma aparência de naturalidade, ligado à ideia de feminilidade, quando na verdade, é a causa primária para a fraqueza ou desvalorização da mulher no mercado de trabalho.

Essas atividades naturalizadas como parte das "responsabilidades femininas", invisibilizam seu valor e geram impacto sobre o desenvolvimento pessoal e profissional das mulheres (21). Essa dinâmica não só perpetua desigualdades, como também molda a forma como as mulheres enxergam seu próprio valor, frequentemente vinculado à sua capacidade de atender aos outros (22).

Uma das consequências disso é a sobrecarga emocional que acompanha essas expectativas. Espera-se que as mulheres percebam as necessidades antes mesmo de serem verbalizadas, que estejam sempre disponíveis e que o façam com paciência, dedicação e sem reclamações. Essa pressão para desempenhar o papel de cuidadora perfeita limita as possibilidades de realização pessoal e profissional das mulheres, ao mesmo tempo que reforça desigualdades no ambiente familiar e no mercado de trabalho (23).

A divisão sociossexual do trabalho nas relações sociais capitalistas de produção. A intersecção do trabalho com a reprodução, na conformação capitalista, serve ao capital não somente pela exploração da força de trabalho feminina no espaço produtivo, mas também nas atividades domésticas que garantem a manutenção de novos trabalhadores(as) para o mundo do trabalho. Os papeis associados ao feminino ou masculino não são produto de um destino biológico, são construtos sociais. E mesmo quando as mulheres aceitam essa situação por questões afetivas, nada muda a realidade da opressão, tornando a situação ainda mais complexa (22).

A crítica da sociedade capitalista não pode limitar-se à análise da exploração e da precarização existentes no espaço produtivo, por mais importante que ela seja. Deve abranger aspectos profundos e multifacetados dessa lógica, como a compreensão da opressão presente no espaço reprodutivo, representado pela estrutura da família patriarcal que impõe uma divisão desigual do trabalho para a mulher (22).

Tornar o trabalho doméstico visível, necessário e responsabilidade de todos é um passo importante. Federici (6) invoca a remuneração do trabalho doméstico e sua introdução nos indicadores econômicos de trabalho e rendimento, colocando-o onde deve ser.

"O consumo produtivo que acontece em casa possui uma existência marginal no pensamento econômico. Pelo fato desse trabalho não ser remunerado em uma sociedade na qual trabalho é sinônimo de salário, ele se torna invisível como trabalho, ao ponto de esses serviços não serem incluídos no Produto Interno Bruto (PIB) e suas provedoras estarem ausentes dos cálculos da força de trabalho nacional" (6).

Apesar da tendência de dessexualização do trabalho doméstico, a maioria do trabalho ainda é feito pelas mulheres, especialmente após o nascimento de filhos. Os motivos para isso são a redução de benefícios salariais dos homens quando eles se afastam para cuidar dos filhos. Mesmo inovações, como horários flexíveis, são insuficientes para garantir que o trabalho doméstico seja de fato dividido igualmente, dado o declínio do padrão de vida quando o homem se ausenta do trabalho (6).

Toda a sobrecarga de trabalho mencionada e contextualizada é sentida pelas mulheres, em todos os países do mundo, em especial para os menos desenvolvidos. Relatório da Organização Internacional do Trabalho avaliou que as regulamentações sobre os cuidados infantis ainda são insuficientes, com menos da metade dos países oferecendo incentivos fiscais ou apoio financeiro para famílias com filhos pequenos. E com o envelhecimento populacional em boa parte dos países do mundo, incluindo o Brasil, se dar ao luxo de descartar ou desvalorizar metade de sua população é um grande erro (24).

Segundo o relatório, os indicadores de "Segurança, Empreendedorismo e Cuidados Infantis" apresentam mais espaço para melhorias. Áreas-chave, como a regulamentação do mercado de trabalho, cuidados infantis de qualidade a preços acessíveis, apoio ao empreendedorismo e segurança das mulheres, são bem menos desenvolvidas que outras (24).

Se adicionamos a violência e o assédio às estatísticas, pode-se observar que a sobrecarga dos muitos trabalhos desempenhados por uma mulher não é dissociada de situações rotineiras de abusos e violências, aumentando as chances de adoecimento físico ou mental das mulheres. Estudo avaliou as respostas em redes sociais de mulheres trabalhadoras sobre o significado de ser trabalhadora. Entre as conclusões, as mulheres retratam experienciar contradições: para ter garantida a autonomia é preciso independência financeira, entretanto, as desigualdades que se apresentam impedem que haja igualdade de condições em ocupação dos espaços laborais. As mulheres continuam lutando por emancipação e conquista de suas identidades e subjetividades por meio de resistências e insistências individuais e coletivas (22).

A interação entre os trabalhos doméstico e remunerado é um aspecto-chave na compreensão do impacto diferenciado das condições de trabalho sobre a saúde de homens e mulheres. Pouco se conhece sobre os impactos da divisão desigual do trabalho, enfatizando a "invisibilidade" do trabalho doméstico em seus efeitos à saúde. Os autores sugerem que a revisão das polaridades masculino-feminino e público-privado, não só as mulheres, mas também os homens podem ser beneficiados (25).

CONCLUSÃO

O preço na saúde física e psíquica feminina ao adentrar cada vez mais no mercado de trabalho, que foi desenhado pelos homens e para os homens, ainda é pouco mensurado. A pauta inclusiva, vigente na atualidade, ainda é muito incipiente diante da demanda represada pelas mulheres. É uma tentativa de remendar uma colcha de retalhos. Talvez a solução não seja essa, mas uma nova estrutura, pactuada em novas premissas e conformidades, com diálogo entre as diferentes partes envolvidas, tornando-o um ambiente realmente mais inclusivo e saudável para todos(as).

Os dados estatísticos comprovam que as mulheres trabalham desde cedo, por influência sociocultural, nos cuidados e afazeres domésticos, e continuam a exercer esse tipo de trabalho ao longo de toda vida, gerando sobrecarga e injustiça social. Considerando as interseccionalidades, mulheres pobres, pardas ou negras são mais vulneráveis à precarização do trabalho e da saúde que as mulheres brancas. Entretanto, o sofrimento da mulher contemporânea é universal, fruto de uma lógica patriarcal que favorece os homens.

O adoecimento feminino se mostra superior ao masculino, e mesmo assim, mulheres vivem mais que os homens, assumem cada vez mais responsabilidade, tornando-se chefes de família e líderes. O potencial do feminino vem ganhando cada vez mais força, apesar das críticas e misoginia. Para superar a situação, tanto homens como mulheres precisam ressignificar o trabalho de cuidado, seu compartilhamento e valorização. Uma contracultura que abre as portas para que novos modelos de trabalho e suas relações se estabeleçam, favorecendo a todos(as) mais justiça e saúde biopsicofísica e social.

REFERÊNCIAS

1. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde, 2019. Disponível em: [https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pns/pns-2019](https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pns/pns-2019).

2. Dejours C. Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção, v. 14, n 3, p. 027-034, set./dez, 2004.

3. Farah MFS. Gênero e políticas públicas. Estudos feministas, Florianópolis, 12(1): 360, janeiro-abril, 2024.

4. Mendes JDV, Bittar OJN. Perspectivas e desafios da gestão pública no SUS. Rev.Fac.Ciênc.Méd.Sorocaba, v.16, n.1, p.35-39, 2014.

5. Resolução CNS n.º 510, de 2016. Disponível em: [https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf](https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf).

6. Federici S. O ponto zero: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de Coletivo Sycorax - São Paulo: Elefante, 2019.

7. Wolf N. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução de Waldéa Barcellos. 7. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

8. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico anteriores. Disponível emhttps://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/25089-censo-1991-6.html?edicao=25091.

9. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2024). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral - terceiro trimestre de 2024. Disponível em: [https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pnadca/tabelas](https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pnadca/tabelas).

10. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2022). Cadastro Central de Empresas. Disponível em: [https://sidra.ibge.gov.br/tabela/7528](https://sidra.ibge.gov.br/tabela/7528).

11. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2022). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua anual - outras formas de trabalho. Disponível em: [https://sidra.ibge.gov.br/tabela/7013#resultado](https://sidra.ibge.gov.br/tabela/7013#resultado).

12. Organização Internacional do Trabalho. O tempo de cuidado não remunerado e o trabalho de cuidado no mundo. Genebra: OIT, 2019b.

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