CUIDADO PERFORMATIVO: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE A ARTE E SAÚDE MENTAL NO CUIDADO DE PESSOAS QUE USAM DROGAS

PERFORMATIVE CARE: AN ARTICULATION BETWEEN ART AND MENTAL HEALTH IN THE CARE OF PEOPLE WHO USE DRUGS

CUIDADO PERFORMÁTICO: UNA ARTICULACIÓN ENTRE EL ARTE Y LA SALUD MENTAL EN EL CUIDADO DE PERSONAS QUE CONSUMEN DROGAS

Autores:

Dayane Lacerda Queiroz

Doutoranda – Fundação Oswaldo Cruz/Centro de Pesquisas René Rachou

ORCID: https://orcid.org/0009-0009-1025-6126

Paula Dias Bavilacqua

Doutorado - Fundação Oswaldo Cruz/Centro de Pesquisas René Rachou

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0015-2154

Celina Maria Modena

Pós-doutorado - Fundação Oswaldo Cruz/Centro de Pesquisas René Rachou

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5035-3427

RESUMO

Na relação entre arte e Redução de Danos, as discussões sobre o cuidado geralmente abordam práticas que integram arteterapia, arte-educação e a experiência estética da arte como estratégias de Redução de Danos. Este estudo investigou os objetos artísticos criados pelo Coletivo Arte e RD de Belo Horizonte, analisando suas contribuições para atos performativos que potencializam o cuidado de pessoas que usam drogas. Foi realizada uma análise de conteúdo das obras do coletivo, acompanhada de uma revisão narrativa da literatura existente. Conclui-se que o cuidado performativo, enquanto percepção-imagem de atos performativos, oferece à Saúde Coletiva uma nova perspectiva, centrada na reconstrução de corpos fragmentados e seus desejos de reinvenção.

DESCRITORES: Saúde Mental; Redução de Danos, Arte; Performatividade

ABSTRACT

In the relationship between art and Harm Reduction, discussions about care generally address practices that integrate art therapy, art education, and the aesthetic experience of art as strategies for Harm Reduction. This study investigated the artistic objects created by the Coletivo Arte e RD from Belo Horizonte, analyzing their contributions to performative acts that enhance the care of people who use drugs. A content analysis of the collective’s works was conducted, accompanied by a narrative review of the existing literature. It concludes that performative care, as the perception-image of performative acts, offers a new perspective to Public Health, centered on the reconstruction of fragmented bodies and their desires for reinvention.

DESCRIPTORS: Mental Health; Harm Reduction; Art; Performativity

RESUMEN

En la relación entre arte y Reducción de Daños, las discusiones sobre el cuidado generalmente abordan prácticas que integran arteterapia, arte-educación y la experiencia estética del arte como estrategias de Reducción de Daños. Este estudio investigó los objetos artísticos creados por el Colectivo Arte y RD de Belo Horizonte, analizando sus contribuciones a actos performativos que potencian el cuidado de personas que consumen drogas. Se realizó un análisis de contenido de las obras del colectivo, acompañado de una revisión narrativa de la literatura existente. Se concluye que el cuidado performativo, como percepción-imagen de actos performativos, ofrece a la Salud Colectiva una nueva perspectiva, centrada en la reconstrucción de cuerpos fragmentados y sus deseos de reinvención.

DESCRIPTORES: Salud Mental; Reducción de Daños; Arte; Performatividad

Recebido: 21/02/2025 Aprovado: 05/03/2025

Tipo de artigo: Artigo Qualitativo

INTRODUÇÃO

A arte, como um campo de práticas sensíveis ancoradas no corpo e na inventividade, pode oferecer à Redução de Danos (RD) e à Saúde Coletiva (SC) um caleidoscópio de novas percepções voltadas ao cuidado de pessoas que usam drogas. Após uma busca inicial de textos que tratassem da relação entre arteterapia e redução de danos ou/e arte e redução de danos, observou-se a presença de diversos temas que aproximam experiências estéticas em arte na promoção de tecnologias do cuidado, com ênfase na subjetividade, vínculo e afetos, destaca-se: arte como estratégia para criação de práticas de cuidado1; a arte como “insumo” utilizada como dispositivo de cuidado em consonância a Redução de Danos2; oficinas de arte como método de intervenção em Redução de Danos3 e a utilização da arte da palhaçaria como estratégia de Redução de Danos4.  Destaca-se também a atuação dos coletivos: É de Lei, Biricada, Pagode na Lata, Teatro de Contêiner e o Coletivo Arte e RD. 

Após a análise inicial, enfatiza-se os desafios decorrentes da visão moralista sobre o uso de substâncias, bem como o impacto da arte e de processos estéticos na redução do consumo de drogas e na promoção do senso de pertencimento. Identificaram-se processos criativos como alternativas no cuidado à saúde, evidenciando a conexão entre arte e redução de danos, especialmente nos vínculos com o território e no vínculo comunitário. Observou-se também a escassez de produções artísticas e, consequentemente, a limitada integração de práticas corporais nesse contexto, com foco na performatividade dos corpos e na redução de danos.

Partindo da premissa de que a erradicação do uso de drogas é impossível, a Redução de Danos (RD) propõe um cuidado baseado no “pragmatismo empático” por meio de uma abordagem horizontal contra o modelo moral/criminal5. Portanto, a problematização dos processos político-sociais que envolvem o uso drogas, bem como a utilização da arte como estratégia de redução de danos na concepção de novas percepções-imagens, nos conduz a seguinte problemática: As práticas artísticas, como propiciadoras de contradições e criação de novas percepções-imagens, concebem atos performativos potencializadores do cuidado de pessoas que usam drogas?

O objetivo do estudo foi analisar os objetos artísticos criados pelo Coletivo Arte e RD (CARD)[1] de Belo Horizonte, identificando suas contribuições para a criação de atos performativos potencializadores do cuidado de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, bem como uma revisão narrativa na tentativa de elucidar e interconectar os conceitos de performatividade, arte e Redução de Danos (RD).

MÉTODO

A presente pesquisa configura-se como um estudo qualitativo que explora a intersecção entre Arte e Saúde Mental. A primeira fase do estudo concentrou-se na análise performativa das obras criadas pelo Coletivo Arte e RD, com o objetivo de investigar a experiência estética e a comunicação do cuidado. Para tal, utilizou-se a análise de conteúdo, complementada por uma revisão narrativa da literatura, visando a construção do conceito de Cuidado Performativo. Foram analisadas as seguintes obras: Revista Cersamos (1ª, 2ª e 3ª edição)A[2], Um dos Lugares de Onde Jorra a ImanênciaB[3] (mini doc) e Baseado em Cenas RaciaisC[4] (mini doc).

Os objetos artísticos foram enumerados de acordo com suas datas de produção e seguem a seguinte nomenclatura no decorrer do texto: Um dos Lugares de Onde Jorra a Imanência, 2019(Objeto A); Revista Cersamos, 2019, 2020 e 2023 (Objeto B); Baseado em Cenas Raciais, 2023 (Objeto C). Para análise das obras utilizamos os marcadores: Experiência estética e comunicação do cuidado. Ambas divididas em três elementos: Corporeidade (Corpo/imagem); performatividade (corpo/linguagem) e Palavra (linguagem/imagem).

RESULTADOS

Ao serem convidados a protagonizar a criação de obras artísticas, usuários(as) reconfiguram seus mecanismos perceptivos através da palavra (linguagem/imagem) e da corporeidade (corpo/imagem), adotando sobre si uma corporeidade/palavra de sujeito criador. Após a análise dos objetos artísticos do CARD percebeu-se que o cuidado performativo é atravessado diretamente pelo corpo, a linguagem e a ética. Nos objetos A, B e C a culpa e o vício deixam de permear a performatividade de quem cuida e, consequentemente, de quem é cuidado. Se estabelece dessa maneira uma horizontalidade comunicativa, abrindo espaço para um processo de criação que (re)inventa as problemáticas que circunscrevem o uso da droga. Logo, o cuidado performativo passa a operar por meio da construção de técnicas de imagem, técnicas de experiências e técnicas práticas que articulam corpo, ética e linguagem na produção de ações potencializadoras do cuidado. Ações essas capazes de redistribuir a violência6 direcionada a esses corpos, ou seja, na (re)invenção de si e seus processos emancipatórios.

Para esclarecer essa proposta, apresentamos o quadro a seguir:

CUIDADO PERFORMATIVO

TÉCNICAS DE IMAGEM

TÉCNICAS DE EXPERIÊNCIAS

TÉCNICAS PRÁTICAS

CORPO: (compreende-se o corpo e sua interação intrínseca com a linguagem)

Teatro, dança, música, literatura, artes plásticas, performance, audiovisual (etc).

Mudança de rotina, de espaço e de contato entre as pessoas. Mudança de território (afetivo, geográfico, espontâneo ).

Cruzamento de técnicas de imagem e técnicas de experiências

LINGUAGEM: (compreende-se a linguagem e sua interação intrínseca com o corpo)

Memes, filmes, debates, rodas de conversa (etc)

Discussões temáticas (sorteio, seleção) previamente selecionas ou não.

Sobreposição de histórias de vida utilizando quaisquer técnicas de imagem e experiência

ÉTICA: (crítica ao saber-poder que concebe as experiências, as

práticas e a moral)

Temas atuais (neoliberalismo, racismo, misoginia etc.),escolhidos pelos usuários(as) e/ou artistas.

Postura ético-política diante das singularidades, diversidades e preposições

Interação entre ética, corpo e linguagem

As vidas estilhaças por sistemas políticos produtores de violência estruturam corpos vulnerabilizados, os quais concebem como experiência de liberdade somente o exercício da sobrevivência. É importante reconsiderar os aportes epistemológicos na construção emancipatória do cuidado, bem como na concepção eurocêntrica do bem-estar social. Portanto, investigar atos performativos na prática e percepção do cuidado possibilita a construção de novos aparatos epistemológicos na concepção de ações pós-abissais, pós-capitalistas e pós- coloniais7.

DISCUSSÃO

A performatividade é um conceito utilizado pela primeira vez pelo filósofo John Austin (1911 – 1960) ao se referir aos atos de fala. Austin propõe que a efetividade dos enunciados se deve ao seu caráter performativo, ou seja, o corpo performatiza na prática da linguagem o ato em si, portanto, um ato duplicado: a palavra em si e o enunciado que o corpo performatiza. O discurso que nos reconhece enquanto sujeitos sociais tem por objetivo “designar e estabelecer um sujeito na sujeição, produzir seus contornos sociais no tempo e no espaço”8. Os poderes operam, portanto, na performatividade do ato e na produção de influências discursivas anteriores aos sujeitos e, consequentemente, em suas constituições.

O sujeito que utiliza drogas é interpelado pela linguagem por meio de, pelo menos, dois enunciados: a culpa e o vício. Todo o sistema institucional que o cerca se organiza, predominantemente, em torno de seu ato, o uso de substâncias. Portanto, o cuidado destinado a esses sujeitos é construído historicamente e socialmente por meio de uma performatividade que reproduz relações de poder discursivas e mecanismos de controle9 tanto sobre as interações entre os indivíduos quanto sobre as percepções que estes constroem acerca de seus atos.

Analisando o corpo como realidade bio-política10, considera-se que a corporeidade11 se inicia por meio de percepções moderadas pelo biopoder10. Após a análise dos objetos artísticos, foi possível perceber que a (re)invenção do cuidado, promovida pelo campo da arte, se articula com a (re)invenção da experiência estética e da comunicação do cuidado no campo da Saúde Coletiva. A corporeidade (corpo/imagem) presente nos objetos A, B e C constrói uma percepção-imagem que humaniza o sujeito usuário, abordando temáticas a partir de uma perspectiva ética que não recai sobre a culpabilização, controle ou universalização das ações dos usuários (as).

Os objetos artísticos analisados oferecem aos indivíduos experiências singularizadas, por meio de uma abordagem ética contra performativa, ou seja, ações não universais.  É possível observar essa perspectiva nas narrativas utilizadas no Objeto C, bem como na estética experienciada, a qual não distingue valores éticos de valores estéticos12.  Os objetos analisados possuem a capacidade de gerar presenças temporárias e provisórias, as quais podem influenciar a dinâmica do objeto saúde-doença-cuidado13, afetando, assim, a forma como os processos de cuidado são vivenciados e realizados na intersecção entre arte e saúde mental.

A performatividade utilizada pelo CARD cria uma percepção estética e uma comunicação de cuidado que produz ações contra-performativas13, já que as mesmas transcendem as construções hegemônicas que circunscrevem a loucura, "Ele apenas manifesta aquilo que a loucura é em sua essência: uma revelação do não-ser"14. O não-ser é transformado pela percepção-imagem do ser, uma vez que é nomeado e incorporado em experiências nas quais o cuidado é protagonizado pelo próprio sujeito da ação. Ou seja, um biopoder que é interpelado pelo não-saber, o qual atua no processo de criação, afetando diretamente a percepção de quem o produziu.

A universalidade produz por si só uma contradição performativa, o “não realizado” pelo universal formula os desafios “daqueles que não estão nele incluídos”13. Ou seja, a estrutura social e sua consequente apreensão prática condiciona nossa performatividade, influenciando diretamente nossa imaginação15, a produção dos desejos16 e a construção de si. Portanto, processos colonizadores das corporeidades presentes no objeto saúde-doença-cuidado suscitam a reestruturação das epistemologias17 utilizadas como campo de saber nas abordagens que interconectam arte e Saúde Mental.

CONCLUSÃO

Alvitra-se um cuidado, alinhado a processos biopolíticos, qualificado a perceber e imaginar novos atos performativos capazes de contradizer a universalidade imposta por práticas colonizadoras dos corpos. Redistribuir as violências é habilitar a percepção com a imaginação de novas percepções-imagens, as quais considerem processos de humanização não hegemônicos no arcabouço do objeto saúde-doença-cuidado.

Portanto, destaca-se, após a realização dessa pesquisa, a necessidade de atravessamento entre artistas e profissionais da saúde, bem como a inserção da arte no estudo e desenvolvimento do conceito de cuidado performativo, para que se possa (re)alinhar, através de uma perspectiva decolonial e emancipatória, o cuidado de pessoas que usam drogas.

REFERÊNCIAS

1. Andrade, EA, Silva, MF. Arte como Estratégia de Cuidado para a Saúde Mental. Revista Cordis. História e Arte; 2023 2(30):108-125.

 2. Machado, SK, Cruz, SM, Carvalho, AM, Petuco, RD. Insumos, arte e laço social no contexto das práticas contemporâneas em Redução de Danos no Brasil. Revista de Saúde Coletiva; 2024 34(e34046):1-20.

3. Arruda, MS, Viana, AG, Lima, Tde O, Estevam, TC, Lino, AC, Vaz, PR, Santos, NA. dos, Bruckmann, C., & Braunstein, HR. Redução de danos e arte no fluxo da Cracolândia. Boletim Do Instituto De Saúde - BIS, 2024 25(1), 59–65. 

4. Silveira, RW, Wuo, AE, Azevedo RT. Redução de Danos e vínculos com usuários de drogas: a escuta do olhar de um palhaço; 2022 28(1): 28-39.

5. Surjus, S, Lima, LT organização. Redução de Danos: conceitos e práticas [Internet]. São Paulo: UNIFESP & UNIVESP; 2023 [acesso em 22 set.2024). Disponível em: https://www.supera.org.br/wp-content/uploads/2021/04/UNIVESP_SUPERA13_RD_reduzido.pdf 

6. Mombaça, J. Não Vão Nos Matar Agora. 1a ed. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2021.

7. Porto, MF, Rocha, DF, Fasanello MT. Saúde, ecologias e Emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise. São Paulo: Hucitec Editora, 2021.

8. Austin, J. apud Butler, J. Discurso de ódio. 2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

9. Carneiro, H. Drogas: a história do proibicionismo. 1ª ed. São Paulo: Editora Autonomia Literária, 2018.

10. Foucault, M. Microfísica do poder. 28ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010.

11. Garcez, R. Decolonialidade e as performances do corpo em cena. [dissertação na internet] Santo Amaro: Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, 2024. [acesso em 25 jan, 2025]. Disponível em: https://ri.ufrb.edu.br/bitstream/123456789/4083/1/Decolonialidade_Performances_%20Corpo_%20TCC_2024.pdf 

12. Martins, LM. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

13. Cruz, MC. O Conceito de Cuidado à Saúde [ dissertação na internet] Salvador: Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009. [acesso em 20 jan. 2025]. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/10398/1/2222222.pdf 

13. Butler, J. Discurso de ódio. 2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

14. Foucault, M. A História da Loucura. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2012.

15. Chagas, FM, Junior, AS. Saúde Mental, arte e escrita: cartografando uma travessia. Práticas e Cuidado: Revista de Saúde Coletiva; 2024 5(e20160): 1-28.

16. Boix, JE. Decolonizar el incosciente. 1ª ed. Madrid: Editora Herder & Herder, 2024.

17. Kilomba, Grada. Memórias da Plantação. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

AGRADECIMENTOS:

A CAPES, ao Centro de pesquisas René Rachou, ao grupo de pesquisa PPDH (Políticas públicas e Direitos Humanos) e ao Coletivo Arte e RD.


[1]A Sobre o Coletivo Arte e RD informações disponíveis em: https://www.instagram.com/coletivoarterd?igsh=NzN1NmhrN2c2czV2 

[2]B Objetos artísticos disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1bFfPqY9vOF9NWKB29M-nsz06vh9MWVe3 

[3]C Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Vo57p6NoNZk&t=26s 

[4]D Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QrWQ59Tzcc4&t=214s