A atenção básica e a saúde de mulheres lésbicas

PRIMARY CARE AND HEALTH OF LESBIAN WOMEN

ATENCIÓN PRIMARIA Y SALUD DE LAS MUJERES LESBIANAS

Gesiany Miranda Farias - Doutoranda em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC. ORCID:  https://orcid.org/0000-0002-9442-7296

Vera Lúcia de Azevedo Lima - Docente da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal do Pará-UFPA; Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC. ORCID:  https://orcid.org/0000-0003-0094-4530

Maria Lúcia Chaves Lima - Docente da Universidade Federal do Pará-UFPA; Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ORCID:  https://orcid.org/0000-0003-3062-2399

Jussara Gue Martini - Docente da Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC, Florianópolis-SC; Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ORCID:  https://orcid.org/0000-0003-2629-293X

Marília de Fátima Vieira de Oliveira - Docente da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal do Pará-UFPA; Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC. ORCID:  https://orcid.org/0000-0003-4303-9434

Marina da Silva Sanes - Doutoranda em enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC.ORCID:  https://orcid.org/0000-0002-2367-6148

 Maria de Nazaré Alves de Lima - Docente e mestre em doenças tropicais pela Universidade Federal do Pará-UFPA. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6069-5989

RESUMO

Objetivo: conhecer as concepções de enfermeiras/os da atenção básica sobre a saúde das mulheres lésbicas. Método: estudo exploratório, de abordagem qualitativa, realizado no contexto da Atenção Básica do município de Belém, desenvolvido no período de outubro de 2018 a janeiro de 2019. Realizadas entrevistas semiestruturadas individuais, acompanhadas de questionário sociodemográfico, com 13 enfermeiros. Resultados: por meio dos discursos, revelou-se a presunção da heterossexualidade das usuárias e uma concepção estereotipada de gênero impostos à lesbianidade. Conclusão: o conhecimento sobre saúde das lésbicas por profissionais de saúde foi observado nesta pesquisa que identificou a presunção da heteronormatividade como uma das maiores fragilidades encontradas, ocasionada quando um profissional de saúde oferece um cuidado equivocado, englobando todas as mulheres como heterossexuais. Outro ponto observado é o desafio de desconstrução do estereótipo de gênero, citado em alguns discursos dos enfermeiros, quando tentavam caracterizar seus pacientes pelo seu tipo de comportamento ou vestimenta.

DESCRITORES: Atenção Primária à Saúde; Lésbica. Enfermagem; Discurso; Saúde da Mulher.

SUMMARY

Objective: to know the conceptions of primary care nurses about the health of lesbian women. Method: exploratory study, with a qualitative approach, carried out in the context of Primary Care in the city of Belém, developed from October 2018 to January 2019. Individual semi-structured interviews were carried out, accompanied by a sociodemographic questionnaire, with 13 nurses. Results: through the speeches, the presumption of the heterosexuality of the users and a stereotyped conception of gender imposed on lesbians were revealed. Conclusion: knowledge about lesbian health by health professionals was observed in this research, which identified the presumption of heteronormativity as one of the greatest weaknesses found, caused when a health professional offers the wrong care, encompassing all women as heterosexuals. Another point observed is the challenge of deconstructing the gender stereotype, mentioned in some of the nurses' speeches, when they tried to characterize their patients by their type of behavior or clothing.

DESCRIPTORS: Primary Health Care; Lesbian. Nursing; Speech; Women's Health.

RESUMEN

Objetivo: conocer las concepciones de enfermeras de atención primaria sobre la salud de mujeres lesbianas. Método: estudio exploratorio, con abordaje cualitativo, realizado en el contexto de la Atención Primaria de la ciudad de Belém, desarrollado de octubre de 2018 a enero de 2019. Se realizaron entrevistas individuales semiestructuradas, acompañadas de un cuestionario sociodemográfico, con 13 enfermeros . Resultados: a través de los discursos se reveló la presunción de la heterosexualidad de las usuarias y una concepción estereotipada de género impuesta a las lesbianas. Conclusión: se observó en esta investigación el conocimiento sobre la salud lésbica por parte de los profesionales de la salud, que identificó la presunción de heteronormatividad como una de las mayores debilidades encontradas, provocada cuando un profesional de la salud ofrece una atención equivocada, englobando a todas las mujeres como heterosexuales. Otro punto observado es el desafío de deconstruir el estereotipo de género, mencionado en algunos discursos de las enfermeras, cuando trataban de caracterizar a sus pacientes por su tipo de comportamiento o vestimenta.

DESCRIPTORES: Atención Primaria de Salud; lesbiana Enfermería; Discurso; La salud de la mujer.

RECEBIDO: 02/02/2023

APROVADO: 09/03/2023

INTRODUÇÃO

A Atenção Básica tem como uma de suas atribuições primordiais estar próxima aos usuários e usuárias, e figura como porta de entrada preferencial de cuidado. A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) aponta que as ações e serviços envolvem a promoção da saúde e a prevenção de agravos, destacando que estas não podem promover a exclusão em virtude da idade, gênero, etnia, raça, condição social, orientação sexual, entre outros(1).

Desse modo, o conhecimento desses aspectos conceituais do Sistema Único de Saúde (SUS) é importante na discussão sobre os direitos de todas as pessoas, mostrando que as reivindicações pela aplicabilidade desses direitos não é uma questão de favorecimento a um grupo, mas um dever do Estado.

No entanto, o Ministério da Saúde sinaliza que muitos profissionais da Atenção Básica não se sentem confortáveis e nem capacitados para lidar com a temática da sexualidade ou com a saúde sexual das usuárias do serviço (2). Uma pesquisa, realizada nas Unidades Básicas de Saúde no Piauí, constatou que a falta de acolhimento nos serviços de saúde é uma das principais barreiras para uma assistência eficaz às mulheres lésbicas (3).  

Outra pesquisa realizada em Cajazeiras, na Paraíba, mostrou que lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT) vivenciavam constrangimento na assistência dos profissionais de saúde, ou seja, notou-se barreiras no acesso aos serviços para pessoas com orientação sexual diferente da heterossexual, e para pessoas com identidade de gênero não hegemônica (4).

As práticas assistenciais para as mulheres ainda são voltadas para o padrão heteronormativo, com enfoque no modelo gravídico-puerperal (5). Porém, apesar das políticas de saúde pontuarem a saúde reprodutiva de lésbicas, o acesso ao planejamento familiar é uma prática que não abrange todas as famílias em suas diversidades. Dentre as doenças que acometem as lésbicas, o desenvolvimento de câncer de colo de útero e o risco de infecção pelo HPV podem ser agravados para esse público (6).

A discriminação na sociedade e a vulnerabilidade das mulheres a diversas patologias, muitas vezes, causa mais adoecimento e mortes do que os diversos patógenos ou agentes etiológicos, ou seja, fatores sociais, culturais e históricos podem influenciar no adoecimento, por isso são considerados determinantes sociais em saúde, como é o caso da lesbofobia (2).

Os profissionais de saúde têm um papel relevante nesse contexto, especialmente a/o enfermeira/o, pois exerce participação significativa no processo de cuidar e deve buscar o aperfeiçoamento de suas práticas levando em consideração a dignidade humana e os determinantes sociais da saúde (7).

Diante disso, o presente artigo objetiva conhecer as concepções de enfermeiras/os da Atenção Básica sobre a saúde das mulheres lésbicas, uma vez que conhecer tais discursos é uma via importante para a promoção de reflexões que visem transformações e quebras de paradigmas em relação ao cuidado em saúde envolvendo essa população.

MÉTODO

Trata-se de um estudo exploratório que permitiu a construção de uma visão ampliada, com perspectiva aproximativa sobre o fenômeno, sendo relevante para temas pouco mapeados (8). Teve uma abordagem qualitativa que se vale do uso de estruturas interpretativas para demonstrar o fenômeno, de modo a conhecê-lo a partir dos significados que as pessoas e os grupos têm sobre as situações do cotidiano de um problema e/ou realidade (9).

A pesquisa foi realizada no município de Belém do Pará, no âmbito da Atenção Básica, vinculada aos oito (8) Distritos Administrativos da cidade: Mosqueiro (DAMOS), Outeiro (DAOUT), Icoaraci (DAICO), (DABEN), Entroncamento (DAENT), Sacramenta (DASAC), Belém (DABEL) e Guamá (DAGUA)(10). (Prefeitura de Belém, 2017). Para cada distrito, foi elencada uma Unidade Básica de Saúde (UBS).

Para participação nesta pesquisa, foram convidados enfermeiros que atuam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e que desenvolvem ações direcionadas à atenção à saúde das mulheres no contexto das políticas e programas de saúde para este grupo da população, sendo apresentados os objetivos e as justificativas da pesquisa. O convite foi realizado de forma presencial, após o consentimento do gestor dos serviços de saúde e a apresentação dos servidores em exercício da função.

Entre os 23 profissionais da enfermagem consultados, foram excluídos 10 enfermeiros que atuam apenas em outros programas de saúde. Deste modo, 13 enfermeiros constituíram o grupo de participantes desta pesquisa.

A coleta de dados foi realizada de forma individual pela pesquisadora principal no período de outubro de 2018 a janeiro de 2019, sendo concretizada nos cenários de prática dos participantes da pesquisa, por meio da aplicação de um questionário sociodemográfico, seguido de roteiro de entrevista semiestruturada, tratando dos seguintes temas: rotinas do serviço na UBS, saúde é direito sexual e reprodutivo, além de atenção à saúde de mulheres lésbicas. As entrevistas foram audiogravadas e, posteriormente, transcritas no programa Microsoft Word®.

Utilizou-se a análise de conteúdo proposta por Laurence Bardin (11), cumprindo as etapas da pré-análise, exploração do material, o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Durante essas etapas, elencaram-se as frases de destaque e, posteriormente, as categorias para realizar a discussão dos dados encontrados.

A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Pará (UFPA), aprovada pelo parecer de número CAAE 90860018.3.0000.0018, respeitando a resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466 de 12 de dezembro de 2012.

Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), no qual as pesquisadoras assumiram a responsabilidade sobre as informações recebidas ou obtidas em gravações de voz e outros meios, relativas aos sujeitos da pesquisa.

Os resultados foram apresentados preservando a identidade dos enfermeiros, utilizando-se codificação alfanumérica para cada participante (E1, E2, E3, ...), de modo a garantir o mínimo de riscos, tanto individual como coletivo, bem como assegurar que danos aos serviços e aos trabalhadores fossem criados.

RESULTADOS

Das UBS vinculadas aos oito (8) Distritos Administrativos, somente 07 delas foram incluídas, ficando de fora o DABEL por ser o único distrito que não tem UBS. Dentre os 13 participantes, 84,6% são mulheres, 15,4% são homens e todos os participantes se apresentam como heterossexuais. Sobre os aspectos religiosos, 38,5% são católicos, 23% dos enfermeiros disseram não ter religião, 15,4% relataram ser adventistas, 15,4% evangélicos e 7,7% espíritas.

Quando questionado sobre o cuidado as mulheres lésbicas, os participantes mencionaram a ideia de normalidade ao ofertar o mesmo tipo de ação, demonstrando não diferenciar as pessoas pela orientação sexual. Nesse discurso dos padrões de comportamento, algumas falas abordaram esse padrão de normalidade, sendo observada a influência da heteronormatividade que abrangem os pensamentos de alguns profissionais de saúde em relação a assistência como destacados abaixo:

[...]. Aqui já temos o atendimento de enfermagem voltado para todas as pessoas que precisam da gente, então ela ia ser atendida normalmente pela nossa casa, como uma paciente normal (E12)

No entanto, paradoxalmente, ao procurar evidenciar que são normais, nominam o normal como os outros, e não a lesbianidade como algo normal:

[...] A pessoa normal eu não pergunto, só se ela vier e me disser, entendeu? (E12)

Soma-se à ideia de normalidade, a concepção vinculada a um processo de patologização da sexualidade, comparando-a com o cuidado de pessoas que vivem com tuberculose ou sífilis, por exemplo:

[...] Então ela ia ser atendida normalmente pela nossa casa, como uma paciente normal, mesmo como paciente de TB (tuberculose), como de hanseníase, como todos os outros casos (E02)

No caso do cuidado pré-natal, sinaliza-se na direção de uma naturalização de que a assistência é prestada apenas às mulheres heterossexuais, não levando em consideração que mulheres lésbicas podem engravidar e ter outras patologias.

[...] Aqui é muito básico, aqui a gente só atende grávidas e o Hiperdia, só, então sobre contato com esse tipo de pessoas, até hoje eu não tive entendeu? (E7)

[...] o pré-natal ele é baseado naquela relação que você julga que é uma relação hétero, “se quer” (não) perguntamos se a parceira é do mesmo sexo ou não (E6)

Os enfermeiros expressam os modos como percebem e identificam a lesbianidade, atravessados pela identificação de comportamentos e papéis tidos como masculinos:

[...] A própria maneira de agir, também em alguns casos, mas algumas vezes são bem discretos que não dá pra perceber assim de uma forma visual, de uma forma das características das condutas da pessoa, a gente sabe quando é (E1).

 

Por fim, fica evidente a associação linear entre gênero e sexualidade ao vincular uma orientação sexual lésbica à construção da identidade de gênero:

[...] a gente sabe que algumas lésbicas hoje que tem aquele padrão meio estereotipado já tendendo para o masculino (E4)

[...] Uma das moças que eu atendi parece um homem, se eu olhar de noite é um rapaz, o trabalho dela é metalúrgico (E12)

De acordo com as falas dos participantes da pesquisa, notou-se o estereótipo utilizado para identificar as lésbicas nos serviços, colocando-as como aquelas que tentam inserir-se no comportamento masculino socialmente aceito. Esse padrão traz para a discussão as concepções do que é ser homem ou mulher na sociedade. Para as mulheres são atribuídos comportamentos de subordinação por meio da imposição de estereótipos do que é ser mulher, que são influenciados historicamente pela sociedade patriarcal.

O resultado, por meio dos discursos, revelou uma concepção equivocada do que é ser lésbica e quais as necessidades em saúde dessas mulheres, reforçados pela patologização da orientação sexual lésbica, assim como pela presunção da heterossexualidade e dos estereótipos de gênero impostos a lesbianidade.

 

 

DISCUSSÃO

A expressão da “normalidade” na assistência de enfermagem e a patologização da orientação sexual de mulheres lésbicas

A primeira concepção evidenciada pelos enfermeiros é sobre a questão da normalidade, de tratar o outro como ‘normal’. Ao nominar o outro como ‘normal’, a lesbianidade ocupa o espaço da anormalidade na concepção das/os enfermeiras/os. As pessoas que não se encaixam nos padrões estabelecidos socialmente são estereotipadas como anormais, podendo ser excluídas e marginalizadas (12).

Por conta dessa teoria, observa-se que aquele que rompe com esse padrão é considerado um perigo à conservação da ordem social. Ora, o padrão de normalidade passou a ser definido segundo valores burgueses e capitalistas, por meio do dispositivo da sexualidade, que definia padrões que visavam à divisão entre homem e mulher, e legitimava apenas práticas sexuais heterossexuais (12).

Por conta do preconceito e da discriminação em relação às orientações sexuais não normativas, lésbicas e mulheres bissexuais se afastam dos serviços de saúde, tendo em vista a não assistência humanizada e a falta de capacitação de profissionais de saúde (13). Quando profissionais de saúde não respeitam e/ou não se interessam pela orientação sexual de uma pessoa, por exemplo, eles estão sendo negligentes e não cumprem seu papel do ponto de vista ético (14).

No que se refere às concepções que patologizam a orientação sexual lésbica, Foucault auxilia na reflexão ao descrever, com detalhes, a universalização do desvio sexual e da entrada da sexualidade no domínio da psiquiatria (15). Identificar, distribuir e patologizar as sexualidades consideradas desviantes da norma até o extremo de nominá-las como anormais. Ainda de acordo com Foucault, a partir de meados do século XIX, a psiquiatria abandona aquilo que havia se constituído o essencial na justificação da medicina mental: a doença. O que ela assume agora é o comportamento, seus desvios, suas anomalias a partir de um desenvolvimento normativo já instituído. Desde então, as experiências sexuais diferentes da heterossexualidade são patologizadas ou, no mínimo, são estereotipadas.

Em que pese às relações hierárquicas, desde o século XVII, a homossexualidade e a sexualidade de mulheres são vistas como perversões sexuais, tendo esse discurso vinculado às práticas normativas e técnicas de poder que influenciam no comportamento desses grupos (12).

Por essa perspectiva, a constante violência de gênero que acomete as lésbicas também ocorre por elas não seguirem o padrão heteronormativo imposto pela sociedade, proliferando como um dos seus atenuantes as ofensas e ameaças que ocorrem em seus cotidianos (16). Problematiza-se o que é considerado normal dentro dos serviços de saúde ou na sociedade. Então, questiona-se: de onde surgiu esse padrão de normalidade que é reproduzido também nas práticas da assistência à saúde?

Importa destacar que tanto para a atuação da enfermagem nos serviços de saúde, quanto para a sociedade em geral, concorda-se que, neste momento, o foco é menos entender o que causa a heterossexualidade (até então inquestionável porque natural) e a homossexualidade (até então desviante e anormal), mas compreender “o problema de por que e como nossa cultura privilegia uma e marginaliza – quando não discrimina – a outra”, o que evidencia o caráter cultural, social e político da sexualidade (17).

A heterossexualidade compulsória e os estereótipos impostos à lesbianidade

Outra ideia que emerge na fala das/dos participantes é a naturalização da sexualidade, associada à presunção da heterossexualidade. Sinaliza-se que as pessoas só são consideradas normais quando elas são heterossexuais; logo, as que rompem com esses padrões são consideradas antinaturais (18).

As normas sociais heteronormativas validam padrões socialmente impostos em relação ao sexo, corpo e questões culturais, que determinam dentro das instituições as maneiras de assistência (19). Outro aspecto dessa dimensão é que existem lésbicas resistentes à cultura heteronormativa, principalmente quando ocorre a “rejeição de um modo compulsório de vida”, praticado pela resistência como rejeição ao patriarcado (20).

A mesma abordagem também contempla outro tipo de heteronormatividade que é a institucional, sendo considerada uma violência simbólica, proporcionando o afastamento de muitas usuárias dos serviços de saúde e, com isso, dificultando a promoção da saúde e a prevenção de doenças. Tal afastamento é provocado, entre outros fatores, pela falta de conhecimento dos profissionais de saúde sobre a lesbianidade e a lesbofobia, o que as coloca em situação de vulnerabilidade (21).

Quando a compreensão do cuidado às mulheres lésbicas é expressa a partir de um recorte, dissociando a concepção de integralidade do cuidado, pode-se perceber a existência de um processo estereotipado sobre lesbianidade. Como uso da expressão “esse tipo de pessoa” se referindo à lésbica, afirmando que não a atende, pois só presta cuidados a pessoas com hipertensão. Outro enfermeiro afirmou que também não atende mulheres lésbicas porque só faz pré-natal. Esses pensamentos são estereotipados e equivocados, pois afirmam que mulheres lésbicas não podem ter hipertensão ou engravidar.

Por medo do preconceito, muitas lésbicas não revelam sua orientação sexual nos serviços de saúde, o que reforça a importância de processos formativos permanentes, que permitirão ao profissional de saúde a compreensão de forma mais precisa de que, na relação de cuidado, devem fazer uso do acolhimento com empatia, proporcionando assim um laço de confiabilidade entre profissional e usuária do serviço (22).

Essa não discussão sobre diversidade sexual em diversos espaços institucionais pode levar a concepções equivocadas sobre a lesbianidade, o que pode ser visto em diversas falas das/dos participantes que convergem para uma percepção estereotipada da lesbianidade: a associação da orientação sexual lésbica aos papéis e comportamentos vinculados cultural e historicamente ao gênero masculino.

Percebe-se a existência de imagem preconcebida para identificar as lésbicas nos serviços de saúde, construindo um estereótipo que as coloca como mulheres que tentam inserir-se no contexto do comportamento masculino socialmente aceito. Uma postura social que nos remete para reflexões do que é ser homem ou mulher na sociedade, onde para as mulheres são atribuídos comportamentos de subordinação imposta historicamente pela sociedade patriarcal. Na prática, esses padrões de conduta se tornam mais profundos quando direcionados às mulheres não-heterossexuais (23).

Soma-se a isso a ideia de que os enfermeiros sabem, sem questionar, quando as pessoas têm uma orientação não heterossexual, salientando o equívoco de acreditar que as expressões de gênero e de sexualidade devem ser explicitadas pelo corpo. Isso implica, ainda, uma correspondência compulsória entre sexo, gênero e sexualidade.

Desta forma, é preciso romper com concepções que definem um único padrão de comportamentos para homens e mulheres, pois isso acarreta sofrimento para muitas pessoas, como as lésbicas, por exemplo. Ficou explícito que muitas delas são percebidas como homens, por irem na contramão do padrão socialmente imposto do que é ser mulher. Ressalta-se que um corte de cabelo, roupas, cores e sapatos não têm gênero.

Deste modo, concorda-se que existem caminhos rumo a um cuidado em saúde que promova a efetivação dos direitos de mulheres lésbicas. Este cuidado pode se dar pela via da humildade cultural, associada à competência cultural. A humildade cultural é um termo que a priori foi utilizado para tratar sobre a questão dos refugiados, tendo como enfoque a multiculturalidade, sendo “definida como um processo de estar ciente de como a cultura pode afetar comportamentos relacionados à saúde” (24:1,2).

 A competência cultural é fundamental para conduzir uma assistência em saúde eficaz, mas desde que o profissional de saúde seja capacitado para atuar de acordo com o contexto cultural da usuária do serviço de saúde. Ambas as terminologias devem levar o profissional a reflexão sobre as diferenciações culturais da sociedade (24).

Nesses termos, quando um profissional adquire fundamentação sobre diversidade sexual, compreende o vocabulário, revê suas crenças pessoais e seu papel como profissional, ele cria um ambiente inclusivo durante a assistência (25).

CONCLUSÃO

O conhecimento sobre saúde das lésbicas por profissionais de saúde foi observado nesta pesquisa que identificou a presunção da heteronormatividade como uma das maiores fragilidades encontradas, ocasionada quando um profissional de saúde oferece um cuidado equivocado, englobando todas as mulheres como heterossexuais. Para a superação desses equívocos, recomenda-se a educação e o desenvolvimento de habilidades que permitam aos profissionais compreenderem que o cuidado em saúde deve ser realizado de forma equitativa.

Outro ponto a ser considerado para as práticas de saúde é o desafio de desconstrução do estereótipo de gênero, citado em alguns discursos dos enfermeiros, quando tentavam caracterizar seus pacientes pelo seu tipo de comportamento ou vestimenta.

A apropriação desse estereótipo trouxe a reflexão sobre a necessária, urgente e permanente formação e sensibilização que precisa ocorrer, a fim de que possam influenciar positivamente no perfil desse profissional, uma vez que só se acessa a orientação sexual de alguém quando a própria pessoa a revela.

É necessário, também, pensarmos na abordagem desta temática nos cursos de graduação em enfermagem, contribuindo para formação de profissionais sensíveis aos modos de ser e viver da multiplicidade de pessoas, de modo a garantir a efetivação do direito à saúde, que passa pelo acesso livre de preconceito, estritamente ético e ofertado nos pressupostos da integralidade do cuidado.

No percurso pelos serviços de saúde foi observado o interesse dos enfermeiros pela temática do estudo, muito embora a fragilidade em aspectos conceituais e na prática desses profissionais tenha se mostrado nos resultados da pesquisa em questão.

Destaca-se que, desde o início, essa pesquisa não teve o interesse de revelar vilões ou culpados, muito menos teve o intuito de acusar os profissionais sobre seus discursos, na medida em que, durante a travessia, ficaram pontuadas nas discussões que muitas ações que estão no imaginário de cada um foram construídas histórica e culturalmente, mas que se encontram sujeitas à desconstrução.

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