Entre a força e a fragilidade: reflexões sobre a saúde masculina e o HIV/aids no contexto patriarcal brasileiro
Between strength and fragility: reflections on men's health and HIV/aids in the brazilian patriarchal context
Entre fortaleza y fragilidad: reflexiones sobre la salud de los hombres y el VIH/sida en el contexto patriarcal brasileño
AUTORES:
Erika Karla da Silva Vieira Alves - Mestre em Serviço Social - Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN. ORCID: 0000-0001-5909-4708
RESUMO
A saúde masculina no Brasil é profundamente influenciada por construções socioculturais, especialmente aquelas enraizadas no patriarcado. Essas construções, que frequentemente associam masculinidade à força e invulnerabilidade, podem mascarar as vulnerabilidades dos homens, particularmente em relação a doenças como o HIV/AIDS. Desde a sua emergência nos anos 1980, o HIV/AIDS tem sido um desafio significativo para a saúde pública brasileira, com altas taxas de infecção entre os homens. O estudo proposto busca entender como o patriarcado afeta a percepção e o tratamento da saúde masculina no contexto do HIV/AIDS, com o objetivo de desenvolver estratégias de prevenção e tratamento mais eficazes e promover uma compreensão mais inclusiva da masculinidade.
Palavras-chave: Saúde Masculina. Construções socioculturais. Patriarcado. HIV/AIDS.
ABSTRACT
Men's health in Brazil is deeply influenced by sociocultural constructions, especially those rooted in patriarchy. These constructions, which often associate masculinity with strength and invulnerability, can mask men's vulnerabilities, particularly in relation to diseases such as HIV/AIDS. Since its emergence in the 1980s, HIV/AIDS has been a significant challenge for Brazilian public health, with high infection rates among men. The proposed study seeks to understand how patriarchy affects the perception and treatment of men's health in the context of HIV/AIDS, with the aim of developing more effective prevention and treatment strategies and promoting a more inclusive understanding of masculinity.
Keywords: Men's Health. Sociocultural constructions. Patriarchy. HIV/AIDS.
RESUMEN
La salud de los hombres en Brasil está profundamente influenciada por constructos socioculturales, especialmente los arraigados en el patriarcado. Estas construcciones, que a menudo asocian la masculinidad con la fuerza y la invulnerabilidad, pueden enmascarar las vulnerabilidades de los hombres, especialmente en relación con enfermedades como el VIH/SIDA. Desde su aparición en la década de 1980, el VIH/SIDA ha sido un reto importante para la salud pública brasileña, con altas tasas de infección entre los hombres. El estudio propuesto busca comprender cómo el patriarcado afecta la percepción y el tratamiento de la salud masculina en el contexto del VIH/SIDA, con el objetivo de desarrollar estrategias de prevención y tratamiento más eficaces y promover una comprensión más inclusiva de la masculinidad.
Palabras clave: Salud masculina. Construcciones socioculturales. Patriarcado. VIH/SIDA.
RECEBIDO: 27/11/2023 APROVADO: 16/01/2024
TIPO DE ARTIGO: Artigo Original
INTRODUÇÃO
A saúde masculina, em sua complexidade, é influenciada por diversos fatores socioculturais, dentre os quais as construções patriarcais de gênero se destacam. No contexto brasileiro, marcado por uma profunda herança patriarcal, a masculinidade é frequentemente associada à força, virilidade e invulnerabilidade. No entanto, essa visão estereotipada pode ocultar a fragilidade e vulnerabilidade dos homens, especialmente em relação a questões de saúde, como o HIV/AIDS.
O HIV/AIDS, desde sua emergência nos anos 1980, tem sido um desafio global de saúde pública. No Brasil, apesar dos avanços no tratamento e prevenção, ainda observamos altas taxas de infecção, especialmente entre a população masculina. Esta realidade, somada às construções patriarcais de gênero, gera uma série de implicações para a saúde e bem-estar dos homens [1].
Nesse contexto, levanta-se a seguinte questão problema: Como as construções patriarcais de gênero influenciam a percepção e o manejo da saúde masculina, especialmente em relação ao HIV/AIDS no contexto brasileiro?
A compreensão das nuances da saúde masculina no contexto do HIV/AIDS é crucial para desenvolver estratégias de prevenção e tratamento mais eficazes. Além disso, ao entender como o patriarcado influencia a saúde dos homens, podemos promover uma visão mais holística e inclusiva da masculinidade, que reconheça tanto sua força quanto sua fragilidade.
OBJETIVO
O objetivo deste trabalho é analisar a inter-relação entre as construções patriarcais de gênero e a saúde masculina, focando nas implicações do HIV/AIDS no cenário brasileiro.
MÉTODO
Este estudo adotará uma abordagem qualitativa, baseada em uma revisão da literatura. Serão analisados artigos científicos, relatórios de organizações de saúde e documentos governamentais, buscando identificar padrões, temas e insights sobre a intersecção entre patriarcado, saúde masculina e HIV/AIDS no Brasil.
Com este estudo, esperamos lançar luz sobre as complexidades da saúde masculina no contexto do HIV/AIDS, oferecendo reflexões e recomendações para políticas públicas, profissionais de saúde e a sociedade em geral.
RESULTADOS
De acordo com Saffioti [2], na década de 1970, várias feministas, a maioria delas tidas como radicais, utilizando o conceito de “patriarcado”, tiveram a intenção política de denunciar a dominação masculina sobre as mulheres e analisar a relação homem-mulher dela resultante.
O conceito de gênero, porém, não surgiu de dentro do movimento feminista, e sim no âmbito da academia, e paulatinamente se afastou da discussão em torno do patriarcado. Gênero surge da necessidade de compreender a subordinação de mulheres pelos homens e de como essa dominação masculina é sustentada em suas variadas manifestações, buscando incorporar uma análise crítica para além do campo biológico [3], porém diferentes questões levantadas em torno da realidade do patriarcado ficam de fora, quando utilizamos apenas gênero. Por exemplo, ao utilizar gênero sem patriarcado, a categoria exploração não necessita de ser mencionada.
Ora, para Saffioti [2], dominação e exploração constituem faces de um mesmo processo. Nesse sentido, a análise histórica e social do termo patriarcado nos mostra que ele supera a ideia de dominação dos homens sobre as mulheres na esfera familiar, trabalhista e política. No entanto, apesar das divergências e múltiplas teorias que envolvem o conceito de gênero, convencionou-se que ele designa a construção social do masculino e feminino e que embora já fosse utilizado anteriormente, temos como marco histórico de seu uso o ensaio de Gayle Rubin, publicado em 1975 e intitulado “O tráfico das mulheres: notas sobre a economia política do sexo” como marco inicial de sua difusão. Rubin estabelece uma diferenciação na relação entre sexo/gênero, na qual gênero é concebido como o que é determinando socialmente e o sexo seria o que é considerado biológico/fisiológico, ou seja, “natural”.
De acordo com Saffioti [4], gênero não se resume a uma categoria de análise, já que diz respeito a uma categoria histórica e, como tal, pode ser concebido sob várias instâncias, significando símbolos culturais, conceitos normativos, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva, e ainda como divisões e atribuições assimétricas de características e potencialidades ou também como uma gramática sexual, regulando não apenas as relações entre homens e mulheres, mas também relações entre mulher-mulher e homem-homem. Diferentes linhagens no movimento feminista podem enfatizar distintos aspectos, porém há certo consenso estabelecendo que gênero é a construção social do masculino e do feminino. No entanto, somente o gênero por si só não explica as desigualdades entre homens e mulheres.
É importante entender que o gênero, socialmente construído, se assenta no sexo, situado no campo biológico, na esfera ontológico-orgânica. Saffioti [5] sugere que é preciso realizar estudos sobre mulheres sob a perspectiva de gênero, sendo imprescindíveis estudos e pesquisas que considerem as mulheres enquanto categoria social constituída. Partindo de Saffioti [5], queremos deixar claro que entendemos, também, como absolutamente importante incluir os estudos sobre os homens enquanto categoria de análise social e concordamos com Medrado e Lyra [6] no sentido de que esses estudos devem emergir sob uma perspectiva feminista. Ora, no Brasil, o conceito de gênero se difundiu após a publicação da tradução do artigo já clássico de Joan Scott [7], em 1990, intitulado “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, que reforçava o caráter analítico da categoria gênero e, sob uma perspectiva foucaultiana, colocava o fenômeno do poder no centro da organização social de gênero. Na verdade, é importante considerar o uso do termo gênero como recusa ao essencialismo biológico, em que “a anatomia é o destino”.
Tal perspectiva chamou a atenção para as relações homem-mulher, ainda que as mulheres sejam uma categoria social discriminada pelos homens, estes também categoria social. Porém, para Saffioti [2], essa perspectiva que enfatiza o caráter relacional de gênero deixa a desejar, uma vez que gênero não é apenas social, se o entendemos a partir de uma perspectiva de totalidade: ele é construído, como já ressaltamos, na esfera ontológico-orgânica. Assim, o gênero não é somente uma categoria analítica, mas também uma categoria histórica, exigindo outra inflexão do pensamento.
Para Saffioti [5], as relações de gênero são historicamente anteriores ao patriarcado, sistema de poder e dominação dos homens sobre as mulheres que surge junto com as sociedades de classe. As relações de gênero foram absorvidas como estratégia de articulação de poder pelo patriarcado. Esclarecendo em termos históricos, o gênero data desde 200 a 300 mil anos a.C., quando a humanidade se encontrava no período do chamado paleolítico inferior (o da “pedra lascada”). Durante todo o paleolítico, os humanos eram coletores e caçadores nômades e desconheciam a participação dos machos na fecundação. Já o patriarcado surge junto com as classes sociais, no período neolítico (entre 10 mil e 3 mil anos a.C.). O neolítico é marcado pela sedentarização das comunidades humanas, pela domesticação dos animais, pela invenção da agricultura, pela descoberta da participação dos machos na procriação e, finalmente, pelo surgimento da ideia de propriedade privada e consequente dominação sexual, exploração do trabalho e apropriação dos corpos das mulheres pelos homens.
É nesse contexto que surgem as primeiras sociedades divididas em classes, fenômeno que se mantém até hoje, não obstante as transformações nos modos de produção que se deram do neolítico até o capitalismo monopolista atual (classes de homens e mulheres, de senhores e servos, de escravocratas e escravos, de patrões e empregados etc.). Ainda na década de 1970, Nicole-Claude Mathieu, feminista materialista, aborda, diferentemente de Rubin, a conceituação de gênero, focando na crítica à naturalização da categoria “sexo”. Para Mathieu (apud) [8], “a noção de sexo é organização mental de ideias e de práticas (entre o sexo pensado e o sexo agido), frequentemente contraditórias. Ela entende que a construção do sexo e da sexualidade se dá no campo social/cultural”. Na década de 1990 surgem novas críticas à naturalização do sexo.
Judith Butler [9] aparece nesse cenário ao criticar a dicotomia sexo/gênero, passando a historicizar também a categoria sexo como algo idealizado e forçosamente materializado através do tempo, afirmando que sexo não pode ser compreendido apenas como um dado corporal sobre o qual o constructo do gênero aparece, mas como norma cultural que governa a materialização dos corpos [8].
De acordo com Santos e Cisne [10], a construção social do gênero não pode ocorrer em detrimento da historicização do sexo e o conceito de gênero necessita de uma análise crítica que não obscureça seu caráter histórico. Essa crítica faz com que algumas feministas materialistas adotem a terminologia “relações sociais de sexo” e não de gênero, uma vez que entendem que o sexo é socialmente determinado e que as “relações sociais de sexo” recobrem todos os fenômenos de opressão, de exploração e de subordinação das mulheres.
O ponto central dessa crítica ao conceito de gênero se assenta no fato de que gênero oculta a hierarquia e os antagonismos materiais existentes entre os sexos, na medida em que os estudos de gênero em geral não consideram os sistemas de exploração e de classe, tendenciados que são a realizar abordagens que priorizam as construções culturais nas categorizações do ser homem e do ser mulher, por meio da análise dos símbolos, das subjetividades, das representações sociais e das identidades.
Assim, pelo fato de que o conceito de gênero é muito mais amplo que o de patriarcado, ele não necessariamente contempla a dominação-exploração. Porém, se trazemos junto a gênero o conceito de patriarcado, isso nos permite uma análise mais aprofundada das relações homem-homem, mulher-mulher e homem-mulher, já que passamos a compreender que a desigualdade é construída socialmente pelos agentes envolvidos nas relações sociais, pela tradição cultural e pelas estruturas de poder, sempre nos termos do chamado nó tríplice constituído por gênero, classe social e raça [4].
Estamos de acordo com Santos e Cisne [10] quando estas afirmam que a naturalização do sexo trazido pelo conceito de gênero traz um prejuízo político do ponto de vista coletivo da organização feminista quando trabalhado de forma isolada das relações sociais de classe, mais precisamente considerando o processo de consciência de classe e luta das mulheres. Assim é que privilegiamos neste trabalho a perspectiva que enfoca as relações patriarcais de gênero. Essa perspectiva nos permite entender de forma estrutural as sociedades divididas em classes antagônicas, e nesse sentido nos dá subsídio para compreender a origem dos sistemas de poder, dominação e exploração de homens sobre mulheres e de homens sobre outros homens, o que nos interessa em nosso desejo de compreender os impactos das relações supramencionadas na saúde dos homens com HIV/AIDS.
Com base no que foi abordado sobre masculinidade e relações patriarcais de gênero, para melhor compreensão do objeto de estudo, falando dos impactos à saúde dos homens ante a epidemia de HIV/AIDS, faz-se necessário estabelecer a relação entre saúde e masculinidade. Por meio de pesquisas bibliográficas, foi possível observar que se carece de estudos acerca dessa temática, sendo pouco abordada, diferentemente do que acontece no tocante ao universo feminino, que é amparado por diversos estudos e também por diferentes políticas públicas. Para se compreender melhor que papel tem o “ser homem” e a masculinidade na manutenção da saúde, escolhemos verificar em artigos com o mesmo enfoque e obras que discutem o gênero masculino e a masculinidade. Foi possível apreender que “o cuidado de si e dos outros e a preocupação com a saúde não são tidos como atribuições masculinas”, como explica Costa [11]. Seu estudo demonstrou que, em lugar do autocuidado, os homens, em geral, adotam um estilo de vida autodestrutivo, como demonstrado pelas taxas de mortalidade por fatores externos (homicídio, acidente automobilístico etc.) sempre muito maiores entre homens do que entre mulheres. Estatísticas demonstram que a expectativa de vida das mulheres é superior à dos homens não só no Brasil, mas, também, em outros lugares do mundo. O homem tem risco de morrer mais jovem que as mulheres, em qualquer idade [12].
Para Braz [13], os estudos de gênero apontam que é mais difícil “construir” um homem do que uma mulher pelas vicissitudes por que passa o gênero masculino para a construção de sua identidade e subjetividade, desde a concepção até a vida adulta viril. Os entrevistados da pesquisa realizada por Costa [11] reafirmaram a antiga concepção sobre a fragilidade das mulheres em relação aos homens, e por isso a dependência médica delas. Isso remete a um quadro de negligência no qual a maioria dos homens se coloca. Percebe-se que o desleixo do homem sobre seu quadro de saúde se insere numa das premissas da masculinidade.
Na pesquisa de Marlene Braz [13], a autora explica que os pesquisadores se dividem em relação às causas da mortalidade e dos riscos de adoecer: “as diferenças de gênero no risco de adoecer variam de acordo com o estilo de vida”. Costa [11, p. 88] completa: pela afirmação ou pela negação, a procura por médicos por parte dos homens significa demonstração de fraqueza e vulnerabilidade. Por um lado, pela afirmação de que as mulheres procuram mais os médicos porque necessitam mais, são mais frágeis, sendo os homens mais fortes e menos necessitados de tais cuidados. Por outro lado, pela negação da inteligência e da esperteza imposta pelo comportamento considerado machista. Braz [13] chama a atenção para a sensibilização da população e a criação de políticas públicas voltadas às necessidades de saúde do homem, uma vez que o preconceito social reforçou um quadro de abandono por parte de usuários dos serviços de saúde.
DISCUSSÃO
Desde o início da epidemia de AIDS, o mundo tem enfrentado desafios significativos no combate à doença. Segundo estatísticas globais, 85,6 milhões de pessoas foram infectadas pelo HIV desde o início da epidemia. Infelizmente, 40,4 milhões dessas pessoas perderam a vida devido a doenças relacionadas à AIDS. A prevalência do HIV tem mostrado disparidades notáveis entre diferentes grupos. Em 2022, a prevalência do HIV entre adultos (com idade entre 15 e 49 anos) era 11 vezes maior entre homens gays e outros homens que fazem sexo com homens, em comparação com a população em geral[14]. No entanto, há avanços a serem comemorados.
O Programa Conjunto da ONU sobre HIV/Aids, Unaids, informou que as metas de testagem e tratamento para mulheres acima de 15 anos foram quase todas alcançadas em 2020. Mas, apesar desse progresso, muitos homens que têm o vírus ainda enfrentam desafios significativos. A pesquisa do Unaids aponta que, em comparação com mulheres com HIV, há 740 mil homens a mais que nem sequer sabem que estão infectados. Além disso, 1,3 milhão de homens a mais não têm acesso ao tratamento em comparação com as mulheres. E ainda, 920 mil homens a mais não conseguiram alcançar a carga viral suprimida. Uma das possíveis razões para essa disparidade, segundo a Unaids, são as normas de gênero que valorizam a força masculina e o estoicismo, o que pode explicar por que muitos homens hesitam em buscar cuidados[15].
Nesse sentido, corroboramos a compreensão de que culturalmente as doenças sexualmente transmissíveis estão para os homens como uma afirmação de sua masculinidade, de ser sexualmente ativo, de “não negar fogo”. Segundo Lima, os homens são tomados por um sentimento de invulnerabilidade, reforçando a descrença na eficácia do uso do preservativo[16]. E essa postura do homem tem acarretado um aumento vertiginoso de contaminações e reinfecções. A AIDS tem contribuído para aumentar a taxa de mortalidade entre os homens em todas as partes do mundo. Homens estão transmitindo HIV para mulheres e para outros homens. Contudo, para o enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS na prevenção, controle epidemiológico e assistência, há ainda pouca informação, especialmente sobre como promover atitudes que reduzam as condições de vulnerabilidade. Segundo a UNAIDS, os homens têm menos probabilidade de fazer o teste para o HIV, são menos propensos a buscar o tratamento antirretroviral e têm mais chances de morrer por complicações relacionadas à AIDS do que as mulheres[17].
Globalmente, menos da metade dos homens que vivem com HIV está em tratamento, em comparação com 60% das mulheres. O conceito cristalizado de que AIDS é doença de homossexual permanece até os dias de hoje, e faz com que pessoas heterossexuais se considerassem imunes à doença. Inclusive homens que faziam sexo com outros homens (HSH) e não se autodenominavam homossexuais, também acreditavam que estavam – e esse entendimento parece permanecer – fora do “grupo de risco”. Nesse sentido, parece ser importante nos aproximarmos da categorização HSH (Homens que fazem sexo com homens). Vejamos o que Rios nos diz sobre essa noção[18].
Contudo, essa categorização é campo de disputas, como nos apontam Carrara e Simões[19]. Costa advertia que a carga de preconceito contida em termos como “homossexualidade”, “homossexualismo” e “homossexual” era de tal ordem que seu uso acarretava consequências éticas funestas independentemente da intenção moral de quem os usasse[20]. De outra parte, HSH teve sua eficácia questionada por ativistas como Luiz Mott[21]. Um problema com a categoria HSH é dissolver a questão da não correspondência entre desejos, práticas e identidades numa formulação que recria a categoria universal “homem” com base na suposta estabilidade fundante do sexo biológico, ao mesmo tempo em que permite evocar as bem conhecidas representações da sexualidade masculina como inerentemente desregrada e perturbadora[19].
Consideramos a necessidade de aprofundamento dessa categorização, para que tenhamos melhor entendimento da população que ora pesquisamos, o que tencionamos realizar com a continuidade do estudo. Também é importante, já que estamos abordando o universo afetivo/sexual de homens brasileiros, mencionar a discussão proposta por Parker[22]. Nesse sentido, nos diz Rios, sobre o chamado “modelo tripartite” de Parker[23].
A vigência desses três modelos, em interação e dinâmica, pode nos oferecer uma hipótese para clarificação de diferentes itinerários sexuais, além de oportunizar que examinemos de maneira mais crítica as noções de masculinidade e feminilidade e de homem e mulher, além de outras identidades sexuais: Conforme Parker, situados no contexto de uma ordem social profundamente patriarcal, os conceitos de macho e fêmea, de masculinidade e de feminilidade, fornecem as bases sobre as quais o mundo de significados sexuais foi construído no Brasil[24].
A imagem a seguir mostra dois gráficos de barras horizontais comparando a distribuição dos casos de AIDS por faixa etária e sexo no estado do Rio Grande do Norte, Brasil, nos anos de 2011 e 2021. As barras representam a quantidade de casos em homens (cor mais escura) e mulheres (cor mais clara).
Analisando os dados de 2011, vemos que para quase todas as faixas etárias, os homens têm um número maior de casos do que as mulheres, com uma discrepância particularmente notável na faixa de 30-39 anos. Em 2021, essa tendência se mantém, com o aumento mais significativo de casos entre homens na faixa de 40-49 anos.
A discrepância de gênero nesses dados pode ser influenciada por vários fatores, como diferenças no comportamento de risco, na biologia do sexo, nas normas sociais e no acesso a informações e serviços de saúde. Por exemplo, os homens podem estar mais expostos a comportamentos de risco, como relações sexuais sem proteção com múltiplos parceiros ou uso de drogas injetáveis. Adicionalmente, as mulheres podem ser mais propensas a procurar testes e tratamento devido ao acesso a cuidados de saúde reprodutiva, enquanto os homens podem ter menos interações com o sistema de saúde e, portanto, menos oportunidades para diagnóstico e tratamento.
O gráfico também mostra um aumento no número total de casos ao longo da década em ambos os sexos, sugerindo que a epidemia de AIDS no estado pode estar crescendo, ou que há uma melhoria na detecção e notificação dos casos. Isso destaca a necessidade de políticas de saúde pública direcionadas e eficazes para prevenir a transmissão do HIV e tratar aqueles que já estão infectados, independentemente do gênero [25].
Nesse contexto – vale enfatizar, de fortes desigualdades – foram constituídos sentidos e valores sobre as diferenças anatômicas percebidas entre homens e mulheres, originando um arranjo que hierarquiza as pessoas em termos de cálculos de passividades/feminilidades e atividades/masculinidades, estruturando tanto as relações entre homens e mulheres, como as relações entre pessoas do mesmo sexo; e aqui não devemos pensar apenas nas relações sexuais propriamente ditas, mas às instâncias não sexuais da vida social como na divisão do trabalho e de outros lugares sociais[23]. Diante de tal realidade, vale dizer, a de uma ordem social fundada no patriarcado/machismo/capitalismo, mas que também tem implicações específicas na sociabilidade brasileira, faz-se necessário questionar em que medida as relações patriarcais de gênero têm contribuído para a infecção de IST/HIV/AIDS. Nesses termos, partimos do pressuposto de que estas têm sido trabalhadas na saúde sob a perspectiva do feminino e que o sujeito masculino é “ausente” nas políticas de saúde, assim como da política de HIV/AIDS.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou analisar a relação entre o patriarcado, a sexualidade masculina e os impactos na saúde do homem, especialmente no contexto da epidemia de HIV/AIDS. Através da análise, foi possível identificar que a construção social da masculinidade, enraizada em normas patriarcais, tem implicações significativas na saúde e bem-estar dos homens.
A sexualidade, como discutido, não é um fenômeno isolado, mas é moldada e influenciada por normas sociais e culturais. O patriarcado, como sistema dominante, tem prescrito papéis e comportamentos específicos para homens e mulheres, muitas vezes restringindo a expressão e experiência da sexualidade masculina. A visão de Foucault sobre a sexualidade como uma construção social e histórica oferece uma lente crítica para entender como as normas de gênero influenciam as práticas e percepções sexuais.
O modelo ocidental de masculinidade, que valoriza a força, a dominação e a insensibilidade, tem consequências diretas na saúde dos homens. A relutância em buscar cuidados médicos, a percepção de invulnerabilidade e a associação de virilidade com comportamentos de risco são manifestações dessa construção social. A epidemia de HIV/AIDS, em particular, destaca as falhas deste modelo, com homens sendo desproporcionalmente afetados devido a comportamentos arriscados e relutância em buscar tratamento.
A análise contemporânea da AIDS no Brasil revela que, apesar dos avanços na prevenção e tratamento, ainda existem desafios significativos. A prevalência do HIV entre homens, especialmente jovens, é alarmante e reflete a necessidade de abordagens mais direcionadas e eficazes de prevenção e tratamento.
Em conclusão, é imperativo reconhecer e desafiar as normas patriarcais que moldam a masculinidade e influenciam a saúde dos homens. A desconstrução dessas normas e a promoção de uma visão mais holística e inclusiva da masculinidade são essenciais para melhorar a saúde e o bem-estar dos homens. Além disso, políticas públicas e intervenções em saúde devem ser informadas por uma compreensão crítica das interseções entre gênero, sexualidade e saúde. Somente através de uma abordagem integrada e centrada no gênero, podemos esperar enfrentar efetivamente os desafios da epidemia de HIV/AIDS e promover a saúde e o bem-estar de todos os indivíduos.
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