Por uma Psiquiatria paliativa: Aplicação de cuidados paliativos a usuários da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)

For a Palliative psychiatry: Applying palliative care to Brazilian public psychosocial care (RAPS) users

Por uma Psiquiatría paliativa: La aplicación de los cuidados paliativos a los usuarios de la red brasileña de atención psicossocial (RAPS)

AUTORES:

Luiz Roberto Curia Konig - Médico (PUCPR) especializando em Psiquiatria no Hospital São Lucas (PUCRS). Especialista em Terapia Cognitivo Comportamental pelo Instituto Paranaense de Terapia Cognitiva (IPTC). Psicólogo clínico (UNIP). ORCID: 0000-0003-0334-6085

RESUMO:

Esse artigo cuidou da possibilidade de se falar em uma Psiquiatria paliativa na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), ao colocar-se em cuidados paliativos pacientes com agravos de saúde mental momentânea ou permanentemente impossibilitados à reabilitação. Assim, o objetivo geral foi investigar, nas perspectivas médica e bioética, a viabilidade de portadores de sofrimento psíquico, transtornos mentais e abuso ou dependência de substâncias serem submetidos a cuidados paliativos na RAPS, em função desses agravos e não como condição secundária a doenças de base orgânica. Foram objetivos específicos: identificar os fundamentos bioéticos da ideia de cuidado; examinar o papel da clínica ampliada e do Projeto Terapêutico Singular (PTS) no contexto da atenção psicossocial; e vislumbrar o eventual caráter paliativo das intervenções em saúde mental. Tendo natureza exploratória, o estudo propôs uma análise de dados obtidos a partir de levantamento não-sistemático da literatura. Do ponto de vista bioético, medidas paliativas justificam-se na perspectiva integradora de uma ética do cuidado. Verificou-se também que termos como “cura” e “cuidado” comportam uma imprecisão – e, portanto, uma plasticidade conceitual – que possibilita estender a ideia de paliatividade às práticas dentro da RAPS, de maneira alinhada aos princípios do movimento hospice e da Reforma Psiquiátrica brasileira. Para tanto, o ponto de partida deve ser a elaboração do PTS, no âmbito da clínica ampliada. Por fim, ao incluir medidas suportivas, isoladamente ou em conjunto com ações terapêuticas, o modelo de intervenção atual parece admitir a possibilidade de inclusão de práticas paliativas. Ressalva-se a necessidade de as equipes multidisciplinares atuantes em saúde mental receberem treinamento quanto a técnicas específicas em cuidados paliativos, com vistas ao aperfeiçoamento da assistência prestada.

DESCRITORES: Agravos em saúde mental; Cuidados paliativos; Dependência química; Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); Psiquiatria paliativa.

ABSTRACT:

This study sought to understand the existence of a Palliative psychiatry as Brazilian Psychosocial Care Network (RAPS) offers palliative care to patients momentarily or permanently ineligible for rehabilitation. Therefore, its main purpose was to search medical and bioethical bases for palliative practice under the circumstances of non-physical illnesses. The specific goals were to identify the bioethical foundations of the idea of care; to examine the role of individualized care plan (PTS) in the background of the psychiatric reform; and to glimpse palliative strategies in mental care interventions. The author conducted an exploratory study based on bibliographic data. From a bioethical standpoint, the Ethics of care justifies palliative approaches. The investigation also revealed that words such as “cure” and “care” have some sort of conceptual imprecision (and therefore plasticity) that enables the use of palliative measures within the context of RAPS, in light of the hospice movement and the psychiatric reform. It can be accomplished through a non-asylum approach when developing users’ PTS. By including supportive measures alone or in association with healing interventions, the current model is likely to encompass palliative practices. Nonetheless, mental care multiprofessional teams require proper training to improve assistance skills.

DESCRIPTORS: Mental health issues; palliative care; chemical dependency; Brazilian Psychosocial Care Network (RAPS); Palliative psychiatry.

RESUMEN:

Este artículo abordó la posibilidad de una Psiquiatría paliativa, aunque la Red de Atención Psicosocial brasileña - RAPS coloque a pacientes con problemas de salud mental, temporal o permanentemente incapaces de rehabilitación, en cuidados paliativos. Así, el objetivo general fue investigar, desde las perspectivas médica y bioética, la viabilidad de pacientes con distrés psicológico, trastornos mentales y abuso o dependencia de sustancias para ser sometidos a cuidados paliativos por RAPS, debido a estas enfermedades y no a enfermedades orgánicas. Los objetivos específicos fueron: identificar los fundamentos bioéticos de la idea de cuidado; examinar el papel de la lucha anti-asilo y el Proyecto Terapéutico Singular (PTS) en el contexto de la atención psicosocial; e imaginar la posible naturaleza paliativa de las intervenciones de salud mental. De carácter exploratorio, el estudio propuso un análisis cualitativo de los datos obtenidos de la encuesta no sistemática de literatura. Desde el punto de vista bioético, medidas paliativas se justifican por la verificación de una Ética del cuidado. También se encontró que términos como "cura" y "cuidado" contienen, por su imprecisión, una plasticidad conceptual que permite extender la idea de cuidados paliativos a las prácticas dentro de la RAPS, en línea con los principios del movimiento de hospicio y la reforma psiquiátrica. Por lo tanto, el punto de partida debería ser la preparación del PTS, dentro del alcance de un enfoque anti-asilo. Finalmente, al incluir medidas de apoyo solas o en conjunto con acciones terapéuticas, el modelo de intervención actual parece admitir la posibilidad de prácticas paliativas. Se hace hincapié en la necesidad de que los equipos multidisciplinares que trabajan en salud mental reciban formación sobre técnicas específicas en cuidados paliativos, con el fin de mejorar la asistencia prestada.

DESCRIPTORES: Problemas de salud mental; cuidados paliativos; dependencia química; Red de Atención Psicosocial brasileña (RAPS); Psiquiatría paliativa.

RECEBIDO: 30/01/2024 APROVADO: 09/02/2024

TIPO DE ARTIGO: Artigo Original

INTRODUÇÃO

Apresentando como público pessoas portadoras de sofrimento ou transtorno mental, incluído o uso de álcool, crack e outras substâncias, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) tem a reabilitação e a reinserção como alguns de seus escopos específicos. Entre as demais ações voltadas aos usuários do serviço, têm-se a promoção de cuidados aos mais vulneráveis, a prevenção do uso e da dependência de substâncias e a redução de danos por seu consumo. Esse estudo, assim, foi guiado pela dúvida de ser ou não possível aplicar o conceito, os critérios e as técnicas de manejo de cuidados paliativos a usuários da RAPS que se encontrem provisória ou permanentemente fora da possibilidade de reabilitação.

Levantamento bibliográfico preliminar localizou poucos trabalhos relacionando os cuidados paliativos a distúrbios diretamente ligados à assistência em saúde mental. Uma explicação para a lacuna seria a dificuldade em estabelecer, em relação às doenças psiquiátricas, o que significa estar “fora da possibilidade de cura”, ou ainda o caráter de “ameaça à vida”, critérios historicamente associados à ideia de paliatividade. A definição atual de cuidados paliativos os estende a situações outras que não apenas as doenças ameaçadoras ou incuráveis [1], restando nebuloso o conceito de cura em saúde mental bem como flexível a noção de cuidado [2-6].

Dessa forma, o objetivo geral do estudo foi investigar, nas perspectivas médica e bioética, a viabilidade de portadores de sofrimento psíquico, transtornos mentais e abuso ou dependência de substâncias serem submetidos a cuidados paliativos em função desses agravos e não de doenças de base orgânica. Foram objetivos específicos: identificar os fundamentos bioéticos da ideia de cuidado; examinar o papel da clínica ampliada e do Projeto Terapêutico Singular (PTS) no contexto da atenção psicossocial; e vislumbrar o caráter paliativo das intervenções em saúde mental.

Pensar em situações não orientadas à reabilitação e à reinserção se faz necessário para que as equipes multiprofissionais envolvidas possam rever e ampliar o espectro da assistência prestada. O estudo dos cuidados paliativos, que vem se estabelecendo como uma disciplina autônoma, também se beneficiaria da inclusão de um capítulo que possibilitasse construir conhecimentos específicos sobre a assistência em agravos mentais, da mesma forma que já faz para outras categorias, como as populações de idosos, pacientes oncológicos, pediátrica, entre outras [7].

MÉTODO

Esse estudo foi embasado por pesquisa de natureza exploratória, baseado numa revisão não-sistemática da literatura que reuniu materiais sobre bioética, cuidados paliativos, estrutura administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS) e assistência em saúde mental.

Para tanto, foram consultadas as bases BVS e SciELO entre os meses de dezembro de 2023 e janeiro de 2024. Numa primeira busca, foram utilizados os descritores “Sistema Único de Saúde” AND “Serviços de Saúde Mental”, retornando 224 artigos entre ambas as plataformas pesquisadas, dos quais 28 foram pré-selecionados para a pesquisa que deu origem ao estudo. Na segunda busca, aplicaram-se os termos “Serviços de Saúde Mental” AND “Cuidados paliativos”, retornando 418 estudos. Quando procurados os descritores “Transtornos mentais” OR “Doença Mental” OR “Doença Psiquiátrica” AND “Cuidados paliativos” no título ou no resumo de publicações, foram localizados 56 artigos estrangeiros e 1 artigo nacional, entre os quais se pré-selecionaram 19 artigos. Na sequência, foram descartados da pesquisa estudos que não abordavam a questão da paliatividade em função de doença psiquiátrica, mas apenas os aspectos de cuidado mental em pacientes submetidos a cuidados paliativos por imposição de doença de base orgânica. Como critérios de exclusão, foram aplicados ainda o tempo de publicação superior a 5 anos, idioma diferente do inglês ou do português, o caráter orgânico da doença de base (inclusive doenças neurológicas), assim como a inadequação do material, após análise qualitativa.

Por fim, o resumo e o manuscrito foram elaborados em conformidade com as recomendações SRQR [8]. 

RESULTADOS

Assistência psicossocial e cuidados paliativos como processos históricos

Uma das dificuldades enfrentadas historicamente pela saúde mental no Brasil foi a existência de uma cultura secular, baseada num modelo hospitalocêntrico e excludente, que evocava sua legitimidade para determinar quem, como, onde e por que tratar [9]. A partir das últimas décadas do século XX, passou-se a pensar num novo modelo de atendimento, surgido dos anseios e questionamentos de representações trabalhistas da década de 1970, a que se seguiu a inclusão vitoriosa de um novo olhar sobre a saúde, com o advento da Constituição Federal de 1988, culminando na Lei da Reforma Psiquiátrica e normativas posteriores [10].

Por outro lado, nos primeiros hospices, equipamentos que representaram o embrião do processo que culminou na criação da prática dos cuidados paliativos, houve a orientação de que se voltassem ao atendimento de uma classe social desfavorecida, quase sempre sem outro local para onde recorrer [9]. Tal fato coloca os cuidados paliativos, desde sua origem, como movimento identificado com uma prática inclusiva e, em alguns países, amparada por um sistema de saúde público e universal.

Desse modo, o movimento dos cuidados paliativos [9] e o modelo de assistência psicossocial derivado da reforma psiquiátrica brasileira [10] resultaram, ambos, de processos de inconformismo com práticas então vigentes [9, 11]. Nessa perspectiva, falar em cuidados paliativos na atenção psicossocial sugere a convergência de construções feitas ao longo de décadas e focadas na correção de distorções sociais.

O mesmo se diga em relação à abrangência crescente da população de destinatários dos cuidados paliativos. No mesmo caminhar da definição da atual [12], que supera o antigo critério de incurabilidade e de doenças ameaçadoras da vida, novas pesquisas sugerem a extensão de seu alcance a populações com distúrbios neurológicos ou psiquiátricos [13].

Com efeito, os cuidados paliativos aplicam-se a qualquer pessoa com doença grave, não apenas àquelas em processo de terminalidade, mas com alto risco e impacto negativo sobre a qualidade de vida e as funções da vida diária, incluídos os sintomas e as terapêuticas que se mostrem estressantes para o paciente e seu cuidador [14]. A International Association for Hospice and Palliative Care – IAHPC propõe a definição de assistência paliativa focada no sofrimento intenso provocado por doença severa, destacando os estágios terminais, mas não se restringindo a estes [1]. Apesar de não ser perfeita, ela contribui para uma nova prática e para avanços dos sistemas de saúde, tendo sido produzida a partir de contribuições de profissionais de todo o mundo [11]. Tal construto, assim, parece reforçar a ideia de um cuidado comprometido com a vulnerabilidade social, ao buscar um consenso amparado por perspectivas culturais e econômicas plurais.

Na Atenção Primária em Saúde (APS), os cuidados paliativos também podem compor o planejamento das ações constitutivas do Projeto Terapêutico Singular (PTS), sempre tendo em vista o vínculo para pactuação e o chamado diagnóstico social da pessoa e de seus familiares. Considera-se também urgente a inclusão dos cuidados paliativos entre aqueles prestados de forma continuada pelo SUS, bem como o treinamento adequado das equipes de assistência, de modo a favorecer a universalidade do acesso, a integralidade e a equidade na assistência em rede [15].

Atenção psicossocial, clínica ampliada e projeto terapêutico singular: conceitos em movimento

O modelo de ação que inclui socialmente o sujeito, em vez de excluí-lo, é o de uma clínica ampliada, nesse sentido contraposta ao que se poderia chamar de uma clínica manicomial. Pressupõe atenção à realidade social, apoio familiar, trabalho com grupos e abordagem transdisciplinar [6].

Uma tal clínica se operacionaliza pela criação de novas possibilidades de intervenção, num processo de ruptura, e não de confirmação, de soluções preexistentes [2]. Assim, o “conceito de projeto terapêutico está em construção, desde o início dos anos [mil novecentos e] noventa, modificando-se junto com a história do SUS, do movimento sanitário e da reforma psiquiátrica”. Implica dizer que o PTS é um instrumento flexível, moldando-se a cada necessidade identificada e a cada avanço na compreensão do sujeito e do cuidado que este requer.

Descontados os retrocessos observados em seu passado recente [10], a história do SUS testemunha o aprimoramento do PTS como dispositivo de integração e organização do trabalho das equipes. Mais que isso, constitui um instrumento de cogestão e de coprodução do processo terapêutico de indivíduos ou grupos num contexto de vulnerabilidade. O projeto de cuidado é reflexo da humanização da saúde e dos esforços em promover a cidadania [15].

A formulação de um PTS comportaria quatro momentos distintos: diagnóstico e análise, considerando os aspectos físicos, psíquicos e sociais, com vistas a estabelecer um diagnóstico contemplando os riscos e a vulnerabilidade do paciente; definição de ações e metas de curto, médio e longo prazo a serem co-estabelecidas com o paciente e/ou seus responsáveis e cuidadores e respeitando “momentos chave” como mudanças no ciclo de vida, instalação de doenças etc.; divisão de responsabilidades e tarefas entre os membros da equipe e o paciente e seus cuidadores, garantindo-se a continuidade do cuidado; reavaliação visando a contínua discussão da evolução e da necessidade de ajustes ao projeto [15]. Desse modo, o PTS é uma instância aberta de identificação, reflexão, criação de horizontes com e para o sujeito, dentro de sua singularidade e complexidade. Num cenário ideal, busca adaptar as ferramentas e recursos ao universo do indivíduo, e não o contrário.

DISCUSSÃO

Cuidados paliativos e saúde mental: combinando possibilidades

Um dos motivos que podem ter mantido os cuidados paliativos fora do manto da atenção psicossocial é o conceito, vago, ambíguo e impreciso, de cura em saúde mental [16-17], de onde se deduz que, no modelo pré-reformista e no âmbito da ciência teórica e das leis, a ideia de cura se vincularia ao restabelecimento de condutas e valores socialmente aceitos. Hoje, priorizam-se, entre outros, termos como remissão de episódios agudos, controle de sintomas, estabilidade, recovery e transtorno com episódio único, sendo raras as referências a distúrbios passíveis de remissão completa e permanente [3-4, 17-18].

Reabilitação e recovery constituem não a “cura”, mas a percepção de uma melhora no funcionamento e na qualidade de vida, do ponto de vista do paciente e não meramente do profissional que o assiste [17]. Desse modo, até mesmo o que se entende por tratamento psiquiátrico abarca, na realidade, uma parte considerável de medidas de suporte, visando aliviar sintomas e prorrogar o avanço do quadro ou a instalação de doenças secundárias. Assim, mesmo o conceito mais antigo de cuidados paliativos, relacionado à ideia de incurabilidade [7], não parece afastar sua aplicação ao campo da saúde mental. Isso ocorre porque a compreensão de pessoa vulnerável deve permear todas as possibilidades do individual e do coletivo, implicando, obrigatoriamente, seus contextos singulares na determinação do projeto terapêutico [15], sem desconsiderar, ainda, a ameaça que a vulnerabilidade e as injustiças sociais que a determinam representam à dignidade humana e à própria continuidade da vida [2].

O modelo de atenção baseado numa rede de cuidados é “uma aposta de organizar o cuidado singular, articulando o individual e o coletivo, sendo saúde entendida de modo ampliado, não somente referida ao corpo biológico e seus adoecimentos” [19], demonstrando não haver obstáculos, em tese, para que a paliatividade possa compor a gama de cuidados, relativamente a esse âmbito de assistência.

Não há, contudo, um conceito fechado de cuidado [5-6]. A falta de precisão é positiva, por possibilitar abordagens individualizadas para cada situação. A plasticidade conceitual do termo também se estende ao conceito de saúde, o qual caracteriza-se como “um objeto complexo, portanto, multifacetado, plural, podendo gerar inúmeros discursos a partir dos diferentes pontos de vista; é plural em olhares e significações” [2]. Com isto, “cura” e “saúde” comportam um enfoque dinâmico, moldável, que enxerga o indivíduo, por um lado, em suas necessidades e potencialidades singulares e, por outro, em sua condição de cidadão, parte de um meio social e de um contexto de integralidade e de multideterminação [5, 20].

O cuidado torna-se, então, um princípio ou referência ética, dotado de transversalidade no envolvimento dos diferentes saberes e práticas que o compõem, e não um conjunto de fórmulas a serem aplicadas. O conceito atua como norteador de condutas ético-políticas [2], impedindo a negação da vulnerabilidade, a desqualificação da integralidade e, como consequência, a compartimentalização da assistência entre modalidades “curativas”, “reabilitadoras” e “paliativas” distintas e incompatíveis entre si [13].

Efetivamente, quanto ao abuso ou dependência de álcool, crack e outras drogas, é razoável admitir que a ideia de controle ou redução de danos não se diferencie, em essência, da de cuidados paliativos [21]. Aqui, a assistência já seria, de alguma forma, orientada por uma filosofia paliativa, ao buscar o melhor resultado disponível e amparar o sujeito na realização de um projeto de vida o mais factível ou o menos danoso possível [22]. Em outros contextos socioculturais, a condição de doença mental severa, aqui incluídas as mais diversas categorias e classificações, abarca a ideia de paliatividade, muito embora essa natureza de cuidado ainda não tenha sido devidamente operacionalizada, implicando o risco de a atenção multiprofissional ainda estar subdimensionada para esta população [23].

Cabe especificar que já se fala numa Psiquiatria paliativa, cujos contornos ainda são uma entidade teórico-prática em construção. Parte do pressuposto de que, mesmo com o tratamento adequado, indivíduos com distúrbios mentais graves e persistentes não atingem um nível aceitável de saúde mental, funcionamento psicossocial e qualidade de vida, aproximando as intervenções psiquiátricas à ideia de redução de danos e alívio do sofrimento [13].

Diante desse cenário, a oferta de cuidados paliativos a pacientes psiquiátricos poderia ser prática paralela à cura, quando possível, bem como à reabilitação, complementando-a, fundindo-se ao tratamento curativo ou mesmo o substituindo em situações individualizáveis que abrangessem: sofrimento intenso, como requer a definição mais recente de cuidados paliativos [1]; ameaça à vida, conforme o conceito anterior da OMS [12]; ou a impossibilidade de cura a que se referia a ideia original de cuidados paliativos [7]. Tem-se, pois, que a prática paliativa pode coexistir com outras medidas de atenção psicossocial ou constituir a única modalidade de intervenção possível, no caso de alívio dos sintomas e de controle de danos, resguardando-se sempre a dignidade da pessoa e a individualização do cuidado e ressalvando-se o necessário treinamento da equipe multiprofissional nas técnicas específicas dessa área autônoma do conhecimento [13].

Não existem, até o momento, instrumentos e modelos de intervenção validados para a abordagem em cuidados paliativos de pacientes com doença mental severa [23-25]. Nesse viés, muitas intervenções tipicamente utilizadas no tratamento de distúrbios psiquiátricos refratários ao tratamento podem ser consideradas de natureza paliativa [24].

Desse modo, acredita-se que a paliatividade seja uma postura factível no contexto da integralidade [21] e do PTS, o qual é fruto da humanização do cuidado em saúde e, por definição, aberto e orientado à necessidade da pessoa cuidada e à singularidade de suas vivências, necessidades e objetivos [15]. Tanto que “cada encontro transforma os modos de agir no sistema de saúde, seus modos de ser, trabalhar, adoecer e viver” [2].

CONCLUSÃO

Esse artigo apresenta algumas limitações. Por ter contado exclusivamente com fontes bibliográficas, não foi possível a confirmação empírica das ideias que defende. Além disto, a inexistência de outros trabalhos com igual recorte, especialmente em língua portuguesa, implicou a ausência de parâmetros para determinar os avanços obtidos. Logo, seu mérito consiste, tão-somente, em representar uma provocação ao debate.

Não obstante tais ressalvas, confirma-se, em termos conceituais, a viabilidade dos cuidados paliativos na assistência prestada pela RAPS, seja em paralelo à reabilitação, seja como único meio de suporte ao assistido. A impossibilidade de envolver determinados usuários em estratégias de reabilitação não implica a supressão de cidadania e direitos. Ao contrário, requer assegurá-los por diferentes formas: o amparo à dignidade pautado numa ética do cuidado, medidas suportivas ou de conforto, minimização dos efeitos de sua condição e, por fim, respeito às potencialidades da pessoa cuidada, por mínimas que sejam, como a capacidade de receber amor quando nada mais tiver a oferecer, ações que compõem o que se pode entender como uma Psiquiatria paliativa.

Espera-se que, diante da escassez de bibliografia, este trabalho possa inspirar futuras pesquisas que aprofundem a questão da percepção, do uso e da integração dos cuidados paliativos à atenção em saúde mental no Brasil.

Conflitos de interesses: não há.

Fontes de auxílio à pesquisa ou financiamentos do trabalho: não houve.

REFERÊNCIAS

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