Insegurança Alimentar entre famílias indígenas de Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil

Food Insecurity among indigenous families of Dourados, Mato Grosso do Sul, Brazil

Inseguridad alimentaria entre las familias indígenas de Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil

AUTORES

Caroline André de Souza Jorge - Nutricionista graduada pela Universidade da Grande Dourados (UNIGRAN). Pós-graduada em Nutrição Clínica pela Universidade Gama Filho (UGF). Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Técnica do laboratório de Avaliação Nutricional da Faculdade de Ciências da Saúde da UFGD. ORCID: 0009-0005-2960-7097 - Universidade Federal da Grande Dourados 

Maria Cristina Corrêa de Souza   - Possui graduação em Nutrição pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestrado em Ciência de Alimentos pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e doutorado em Nutrição Humana Aplicada pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), na Faculdade de Ciências da Saúde.

RESUMO

Estudo transversal realizado no período de junho a outubro de 2013 com 435 famílias indígenas residentes nas Aldeias Jaguapiru e Bororó, pertencentes ao município de Dourados (MS). O objetivo do estudo foi estimar a prevalência de insegurança alimentar e identificar os possíveis fatores associados. Para mensuração da Insegurança Alimentar utilizou-se a Escala Curta de Segurança Alimentar e também foi aplicado um questionário padronizado sobre a situação sócio-econômica e demográfica. Para análise estatística foram utilizados os testes de Qui-quadrado, exato de Fischer e de tendência linear. A prevalência de insegurança alimentar foi de 64,1% (IC 95% = 59,8 % - 68,7%), sendo que 27,1% foram classificados em insegurança alimentar sem fome e 37% em insegurança alimentar com fome. Dentre as variáveis independentes sócio-demográficas, a escolaridade, o nível socioeconômico, o número de moradores, a presença de trabalho remunerado o ano todo foram estatisticamente significativos. A aldeia Bororó apresentou piores condições socioeconômicas e maior prevalência de insegurança alimentar. A elevada prevalência de insegurança alimentar encontrada demonstra uma situação preocupante que as famílias vivenciam na reserva de Dourados.

 

Palavras-chave: Insegurança alimentar, indígenas, Jaguapiru, Bororó.

ABSTRACT

Cross study performed during june to october of 2013 with 435 indigenous families residents in villages Jaguapiru and Bororó, belonging to the city of Dourados (MS). The aim of the study was to estimate the prevalence of food insecurity and to identify the possible associated factors. To measure of Food Insecurity we used the Short Scale Food Security and a standardized questionnaire on socio-economic and demographic situation. For Statistical analysis used for tests were Chi-square, right of Fischer and linear trend. The prevalence of food insecurity was 64.1% (IC 95% = 59.8% - 68.7%), and 27.1% were classified as no hunger food insecurity and 37% on food insecurity hungry. Among the socio-demographic independent variables, education, socioeconomic status, number of residents, the presence of paid work all year were statistically significant. The Bororo village had low socioeconomic status and higher prevalence of food insecurity. The high prevalence of food insecurity found show an alarming situation that families experience in booking of Dourados.

Keywords: Food insecurity, Indian, Jaguapiru, Bororó.

RESUMEN

Estudio transversal realizado entre junio y octubre de 2013 con 435 familias indígenas residentes en las Aldeas de Jaguapiru y Bororó, en el municipio de Dourados (MS). El objetivo del estudio fue estimar la prevalencia de inseguridad alimentaria e identificar posibles factores asociados. Se utilizó la Escala Breve de Seguridad Alimentaria para medir la inseguridad alimentaria y también se aplicó un cuestionario estandarizado sobre la situación socioeconómica y demográfica. Para el análisis estadístico se utilizaron las pruebas de Chi-cuadrado, exacta de Fischer y de tendencia lineal. La prevalencia de la inseguridad alimentaria fue del 64,1% (IC 95% = 59,8% - 68,7%), con un 27,1% clasificado como inseguridad alimentaria sin hambre y un 37% como inseguridad alimentaria con hambre. Entre las variables sociodemográficas independientes, la escolaridad, el nivel socioeconómico, el número de residentes y la presencia de trabajo remunerado a lo largo del año fueron estadísticamente significativas. La aldea de Bororó presentaba las peores condiciones socioeconómicas y la mayor prevalencia de inseguridad alimentaria. La alta prevalencia de inseguridad alimentaria encontrada demuestra la preocupante situación vivida por las familias de la reserva de Dourados.

Palabras clave: Inseguridad alimentaria, indígena, Jaguapiru, Bororó.

Recebido: 19/10/2023 Aprovado: 15/11/2023

Tipo de artigo: Artigo Original

INTRODUÇÃO

No Brasil a população indígena é estimada em aproximadamente 1,7 milhão de indivíduos e mais da metade deles vive na Amazônia1. Dentre eles, há os que vivem em situação de relativo “isolamento” sociolinguístico e territorial, e os que possuem estreito contato com a população não indígena. Alguns se aglomeram em terras inviavelmente pequenas; outros habitam periferias e favelas de pequenas cidades ou grandes metrópoles; ainda outros dispõem de espaços adequados e suficientes para sua reprodução física e cultural, mas convivem com as mais diversas ameaças e pressões internas e externas. Alguns grupos podem ser considerados mais privilegiados em termo de assistência (governamental ou não governamental) e outros, em contrapartida, apresentam-se em situação de abandono, vulnerabilidade e quase “invisibilidade” social2.

O Mato Grosso do Sul (MS) é o estado que possui o terceiro maior contingente indígena do país, estimado em aproximadamente 116 mil pessoas. Na cidade de Dourados, MS vivem cerca de 15 mil indígenas residentes nas aldeias Bororó, Jaguapirú, Panambizinho e Porto Cambira. As aldeias que possuem maior população são a Bororó e a Jaguapirú com aproximadamente 13 mil indígenas, representados pelas etnias Kaiowá, Ñandeva e Terena1.

Os Terenas e os Ñandeva ocupam basicamente a aldeia Jaguapiru, esta possui um melhor desenvolvimento socioeconômico. Já os Kaiowá habitam predominantemente a aldeia Bororó, esta apresenta condições de extrema pobreza e escassez. Além das diferenças étnicas que permeiam essas tribos em Dourados, existe a disputa por terra e liderança, estas etnias apresentam comportamento diferenciado e rivalizam entre si3.

Em relação à alimentação dos povos indígenas, no passado eles dependiam, em maior ou menor grau, da agricultura, caça, pesca e coleta para sua subsistência. Por diversos fatores o estilo de vida desses povos sofreu profundas modificações, alterando os sistemas de subsistência, o que resultou em escassez de alimentos e má alimentação, comprometendo a segurança alimentar4.

A segurança alimentar é descrita como o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades

essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitam a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis5.

O direito à alimentação adequada está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos6, na Constituição Federal, definido pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN)7, como também no artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas8. O poder público deve adotar políticas e ações necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população7,8.

Dentre as diretrizes do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional 2016-2019 (PLANSAN), uma delas aborda a promoção, universalização e coordenação das ações de segurança alimentar e nutricional voltadas para comunidades indígenas9.

Como consequência, a insegurança alimentar (IA) pode gerar deficiências quantitativas e/ou qualitativas no consumo alimentar, constituindo um problema nas condições de saúde e nutrição dos povos indígenas. Dados mostram um cenário preocupante em relação às condições de alimentação e nutrição desses povos 10,11,12,13,14,15, com prevalência de desnutrição e anemia nas crianças e de sobrepeso e obesidade nos adultos.

Escalas que avaliem a IA têm sido propostas com o objetivo de monitorar e avaliar o impacto de programas ou estratégias que visam diminuir a situação de fome ou de pobreza em diferentes populações. Foi adaptado da escala do Departamento de Agricultura dos EUA16 um instrumento nacional, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA)17. A partir desta, foram elaboradas versões reduzidas e adaptadas como a de Blumberg18 que desenvolveu uma escala curta contendo seis questões, denominada Escala Curta de Segurança Alimentar.

São escassos estudos a respeito da IA em populações indígenas no Brasil, a falta desse conhecimento prejudica a elaboração de ações de melhorias de qualidade de vida e alimentação. Nessa perspectiva, o objetivo do presente estudo foi comparar a prevalência de IA e seus possíveis fatores associados entre as famílias indígenas das Aldeias Jaguapiru e Bororó da cidade de Dourados, MS

MÉTODOS

Foi realizado um estudo populacional de delineamento transversal nas aldeias Bororó e Jaguapirú, localizadas na reserva indígena de Dourados, MS. A população amostral foi selecionada entre as mulheres indígenas responsáveis pelos domicílios sorteados.

Para a realização da amostragem probabilística proporcional ao número de domicílios das aldeias foi utilizado o programa EPI-INFO versão 7.0. Os parâmetros para cálculo da amostra foram: número de domicílios das aldeias, prevalência de insegurança alimentar estimada em 75,5% para indígenas do Brasil10 como referência, precisão de 5% e 95% de confiança.

O tamanho da amostra requerida foi 257 domicílios, com a inclusão de 20% de perdas a amostra foi ampliada para 309 domicílios. Como este trabalho faz parte de um estudo maior, foram estimados 500 domicílios.

Utilizou-se para o sorteio uma lista contendo o registro dos domicílios retirado de um mapa das aldeias19. O sorteio foi realizado através de amostra aleatória simples pelo programa SPSS versão 21. Os domicílios sorteados foram localizados na coleta de dados através de um GPS da marca Garmin eTrex®.

Dos 500 domicílios elegíveis sorteados foram encontrados 435 (87%) para o presente estudo.

A coleta de dados foi realizada por alunos do Mestrado em Ciências da Saúde, da Residência Multiprofissional em Saúde e acadêmicos do curso de graduação em Nutrição da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), que foram divididos em três equipes, cada uma com um tradutor indígena com conhecimento dos idiomas indígenas locais para auxiliar na comunicação com as famílias.

As equipes e os tradutores foram devidamente treinados quanto à padronização e aplicação do questionário. Na necessidade de tradução do questionário, esta foi realizada após a leitura de cada questão pelos entrevistadores, sendo a mesma repetida pelo tradutor no idioma local de forma fiel à original. Em caso de ausência da responsável pelo domicílio, a equipe retornava até três vezes no mesmo domicílio antes de considerar perda amostral.

Foi realizado um estudo piloto para verificar a adequação do questionário aos objetivos do estudo. A amostra teste foi representada por 10 domicílios de um acampamento indígena (não incluídos na amostra), onde foram aplicados os questionários para avaliar seu desempenho/funcionalidade. Após o estudo piloto procederam-se as modificações no questionário julgadas necessárias para implementação da pesquisa propriamente dita.

Um questionário padronizado e pré-codificado elaborado a partir do material utilizado no 1º Inquérito Nacional de Saúde Indígena20 foi aplicado individualmente às mulheres responsáveis pelos domicílios.

Em relação às variáveis do estudo, para idade das entrevistadas foi coletada a data de nascimento que foi transformada em anos e posteriormente foi classificada em três faixas etárias (10-19 anos; 20-59 anos e 60 anos ou mais). Para escolaridade foram coletados dados sobre a série de estudo que foi em seguida convertido em anos de estudo, da seguinte forma: nenhum, alfabetização de jovens e adultos ensino fundamental do 1º. ao 4º. Ano (0 a 4 anos); ensino fundamental do 5º. ao 9º. ano (5 a 8 anos); ensino médio e superior (mais de 8 anos).

O questionário domiciliar continha informações de dezenove bens duráveis para classificação do nível econômico de acordo com o 1º Inquérito Nacional de Saúde Indígena21. A classificação do nível econômico foi realizada com base na quantidade de bens duráveis nos domicílios através da análise fatorial, a partir da técnica de análise de componentes principais. O resultado da análise de componentes principais gerou um valor para cada bem durável que foi multiplicado pelo número de itens em cada domicílio, posteriormente, esse escore foi classificado de acordo com a medida separatriz tercil, sendo que o primeiro tercil representa menor nível socioeconômico e o terceiro tercil maior nível socioeconômico.

As mulheres foram questionadas a respeito do número de moradores nos domicílios, esses dados foram divididos em duas categorias: uma a quatro pessoas e cinco ou mais. Também foram interrogadas sobre a presença de trabalho remunerado o ano todo por algum morador (sim/não).

Para mensuração da IA utilizou-se a Escala Curta de Segurança Alimentar18, que possui seis questões relativas aos 12 meses anteriores à entrevista. Cada questão pode gerar um ponto e sua soma varia de 0 a 6. As questões número 1, 3, 5 e 6 pontuam a partir

da resposta positiva, a número 2 pela resposta negativa e a questão 4 é dependente do tempo de exposição à falta de alimentos, conforme mostra a Quadro 1. De acordo com o escore as famílias são classificadas em segurança alimentar, insegurança alimentar sem fome e insegurança alimentar com fome (Quadro 2).

De acordo com Santos et al.21 a utilização da escala curta comparada com a EBIA (escala brasileira de segurança alimentar) pode ser positiva facilitando o desenvolvimento de estudos cujo propósito seja verificar e/ou monitorar a situação alimentar de famílias brasileiras. Estudos mostram que a Escala Curta de Segurança Alimentar é uma ferramenta simples, rápida, de baixo custo e útil para vigilância da insegurança alimentar18,21,22,23,24.

Quadro 1 – Questões da Escala Curta de Segurança alimentar.

QUESTÕES

Respostas que pontuam                                 

1 - Alguma vez terminou a comida da casa e o sr(a) não tinha dinheiro para comprar mais?

SIM

2 - O(a) sr.(a) pode oferecer uma alimentação variada, com feijão, arroz, carnes, saladas e frutas para sua família?

NÃO

3 - O (a) sr(a) ou alguma outra pessoa na sua casa tiveram que diminuir a quantidade de comida ou não fazer alguma refeição por falta de dinheiro para comprar mais?


SIM

4 - SE SIM: Em quantos meses isso aconteceu?

> 2 meses

5 - O(a) sr(a) comeu menos do que gostaria porque não tinha dinheiro para comprar mais?

SIM

6 - O (a) sr(a) sentiu fome, mas não comeu porque não tinha dinheiro para comprar mais comida?

SIM

Fonte: Bickel et al.16

Quadro 2 – Escore para classificação da IA.

Score

Classificação

0 – 1

Segurança alimentar

2 – 4

Insegurança alimentar sem fome

5 – 6

Insegurança alimentar com fome

Fonte: Bickel et al.16

 

Foi realizada a codificação, revisão e tabulação dos questionários. O banco de dados foi duplamente digitado no programa Epi Data versão 3.1.

A análise descritiva foi realizada utilizando o pacote estatístico STATA versão

  1. Inicialmente foram calculadas as frequências de todas as características socioeconômicas e demográficas conforme aldeia indígena. A seguir, foram investigadas as associações entre IA e as variáveis socioeconômicas e demográficas utilizando o teste Qui-quadrado de Pearson (χ2), tendência linear e teste exato de Fischer (quando o esperado < 5), sendo considerado estatisticamente o nível de significância de 5%.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal da Grande Dourados (CEP/UFGD)- protocolo n°009/2011, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)- parecer n°. 653/2011 com anuência das lideranças indígenas. As mulheres responsáveis pelo domicílio que concordaram em participar do estudo assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

RESULTADOS

O estudo foi realizado no período de junho a outubro de 2013. Das 435 famílias identificadas, 222 (51,1%) pertenciam à aldeia Bororó e 213 (48,9%) à aldeia Jaguapirú. A prevalência de IA foi de 64,1% (IC 95% = 59,8 % - 68,7%), sendo que 27,1% foram classificados em IA sem fome e 37% em IA com fome. Em relação à IA por aldeia, a aldeia Bororó apresentou maior prevalência (77,9%) em relação à aldeia Jaguapirú (49,8%) (p<0,001). Quanto à magnitude de IA a aldeia Bororó revelou maior prevalência de IA com fome (48,2% contra 25,4%) (p<0,001), já a aldeia Jaguapirú apresentou valores semelhantes em relação aos tipos de IA (Tabela 1).

Na Tabela 1 observa-se a característica das famílias em relação às variáveis socioeconômicas e demográficas. Aproximadamente 90% das mulheres estavam na faixa etária entre 20 e 59 anos de idade. Em relação à escolaridade, a maioria (57,2%) possuía quatro anos ou menos de estudo, sendo que esse percentual foi maior na aldeia Bororó (65,8% contra 49,0%), a aldeia Jaguapirú destaca-se por possui maior percentual de mulheres com maior tempo de estudo (mais de oito anos) quando comparado com a aldeia Bororó (25,5% contra 9,8%) (p< 0,001).

1 Nessa variável houve 13,5% de perdas

*Teste Qui-quadrado de Pearson **Teste para Tendência linear ***Teste Exato de Fisher

 

Tabela 1 – Características socioeconômicas e demográficas da amostra de famílias indígenas por

aldeia. Dourados, Mato Grosso do Sul, MS, 2013.

Variáveis

Bororó

(n=222)

Jaguapirú

(n=213)

p valor

Total

(n=435)

 

n (%)

n (%)

 

n (%)

Idade da mulher (anos)

   

0,238*

0,648**

 

10 – 19

19 (8,6)

15 (7,0)

 

34 (7,8)

20 - 59

190 (85,6)

192 (90,1)

 

382 (87,8)

≥ 60

13 (5,9)

6 (2,8)

 

19 (4,4)

Escolaridade da mulher (anos de

estudo)1

   

< 0,001*

< 0,001**

 

0–4

121 (65,8)

94 (49,0)

 

215 (57,2)

5-8

45 (24,5)

49 (25,5)

 

94 (25,0)

> 8

18 (9,8)

49 (25,5)

 

67 (17,8)

Nível socioeconômico

   

< 0,001*

< 0,001**

 

1º Tercil

144 (64,9)

-

 

144 (33,1)

2º Tercil

78 (35,1)

68 (31,9)

 

146 (33,6)

3º Tercil

-

145 (68,1)

 

145 (33,3)

Número de moradores

   

0,335***

 

0-5

121 (54,5)

126 (59,2)

 

247 (56,8)

> 5

101 (45,5)

87 (40,8)

 

188 (43,2)

Trabalho remunerado o ano todo

   

0,052***

 

Sim

82 (36,9)

99 (46,5)

 

181 (41,6)

Não

140 (63,1)

114 (53,5)

 

254 (58,4)

Benefícios Sociais

   

0,151***

 

Sim

173 (77,9)

153 (71,8)

 

326 (74,9)

Não

49 (22,1)

60 (28,2)

 

109 (25,1)

Nível de Insegurança Alimentar

   

< 0,001*

< 0,001**

 

Segurança

49 (22,1)

107 (50,2)

 

156 (35,9)

Insegurança sem fome

66 (29,7)

52 (24,4)

 

118 (27,1)

Insegurança com fome

107 (48,2)

54 (25,4)

 

161 (37,0)



A classificação socioeconômica foi diferente em relação às aldeias, sendo que na Bororó não foi encontrada nenhuma família pertencendo ao terceiro tercil (maior nível socioeconômico) e na Jaguapirú não teve nenhuma no primeiro tercil (menor nível socioeconômico). A respeito do número dos moradores nos domicílios, a distribuição foi semelhante entre as aldeias, a maioria das famílias (56,8%) possuía cinco ou menos moradores. Há predomínio da ausência de trabalho remunerado o ano todo (58,4%) por algum membro da família, nas duas aldeias. A maioria das famílias da aldeia Bororó (77,9%) e da aldeia Jaguapiru (71,8%) recebe algum tipo de benefício social.

Os principais meios de aquisição de alimentos foram a plantação e criação de animais, a compra e o recebimento de cesta básica (Tabela 2). A maioria das famílias das duas aldeias (89,4%) não utiliza a caça, pesca ou coleta como fonte de alimentos, sendo maior na aldeia Jaguapiru (92,5%) (p=0,044).

Tabela 2 – Fonte de alimentos consumidos da amostra de famílias indígenas por aldeia.

Dourados, Mato Grosso do Sul, MS, 2013.

Fonte

Bororó

(n=222)

Jaguapirú

(n=213)

p valor

Total

(n=435)

Plantação ou criação

de animais

   

0,024***

 

Sim

147 (66,2)

118 (55,4)

 

265 (60,9)

Não

75 (33,8)

95 (44,6)

 

170 (39,1)

Caça, pesca ou coleta

   

0,044***

 

Sim

30 (13,5)

16 (7,5)

 

46 (10,6)

Não

192 (86,5)

197 (92,5)

 

389 (89,4)

Compra

   

1,000***

 

Sim

220 (99,1)

211 (99,1)

 

431 (99,1)

Não

2 (0,9)

2 (0,9)

 

4 (0,9)

Cesta Básica

   

0,841***

 

Sim

208 (93,7)

201 (94,4)

 

409 (94,0)

Não

14 (6,3)

12 (5,6)

 

26 (6,0)

*** Teste exato de Fischer

 

As prevalências de IA, agrupando a classificação com e sem fome, foram diferentes de acordo com as características sócio-econômicas e demográficas (Tabela 3).

Quando estudadas as aldeias juntas verificou-se uma maior prevalência de IA entre os idosos (84,2%) e menor entre os adolescentes (41,2%) (p=0,004 e p=0,001), sendo que a aldeia Bororó não apresentou diferenças significativas (p=0,239) diferentemente da Jaguapirú (p=0,004 e p=0,001).

Nota-se uma tendência decrescente da IA inversamente proporcional ao aumento de escolaridade, sendo que essas associações apresentaram-se estatisticamente significativas tanto nas aldeias independentemente como juntas (p<0,001). As prevalências de IA foram maiores entre as famílias de menor nível socioeconômico (tercil 1 e 2) porém as diferenças não foram significativas nas aldeias separadas (Bororó p=0,091 e Jaguapirú p=0,143).

Sobre o número de morados no domicílio, os que possuem mais de cinco moradores têm maior insegurança alimentar (72,9% contra 57,5%), os dados são semelhantes e significativos tanto nas aldeias individualmente como juntas. O mesmo foi observado na ausência de trabalho remunerado o ano todo como fonte de renda (76% contra 47,5%) (p<0,001). As famílias que recebiam algum tipo de benefício social apresentaram maior insegurança alimentar nas aldeias juntas (67,2% contra 55,0%) (p=0,028).

Em relação a fonte de alimentos consumidos, na aldeia Jaguapiru e nas aldeias juntas a caça, pesca ou coleta e o recebimento de cesta básica teve relação com a presença de insegurança alimentar porém estatisticamente significativas somente na aldeia Jaguapiru (p=0,040 e p=0,017).

 

Tabela 3 – Prevalência de insegurança alimentar de acordo com as características socioeconômicas e demográficas das famílias indígenas por aldeia.

Dourados, Mato Grosso do Sul, MS, 2013.

Variáveis

 

Bororó (n=222)

   

Jaguapirú (n=213)

   

Total (n=435)

 
 

Total

n(%)

IA

n (%)

p valor

Total

n(%)

IA

n (%)

p valor

Total

n(%)

IA

n (%)

p valor

Idade (anos)

   

0,239*

0,117**

   

0,004*

0,001**

   

0,004*

0,001**

10 – 19

19 (8,6)

12 (63,2)

 

15 (7,0)

2 (13,3)

 

34 (7,8)

14 (41,2)

 

20 - 59

190 (85,6)

150 (78,9)

 

192 (90,1)

99 (51,6)

 

382 (87,8)

249 (65,2)

 

≥ 60

13 (5,9)

11 (84,6)

 

6 (2,8)

5 (83,3)

 

19 (4,4)

16 (84,2)

 

Escolaridade (anos de estudo)1

   

< 0,001*

< 0,001**

   

< 0,001*

< 0,001**

   

< 0,001*

< 0,001**

0–4

121 (65,8)

109 (90,1)

 

94 (49,0)

61 (64,9)

 

215 (57,2)

170 (79,1)

 

5-8

45 (24,5)

31 (68,9)

 

49 (25,5)

21 (42,9)

 

94 (25,0)

52 (55,3)

 

> 8

18 (9,8)

4 (22,2)

 

49 (25,5)

13 (26,5)

 

67 (17,8)

17 (25,4)

 

Nível socioeconômico

   

0,091**

   

0,143***

   

< 0,001*

< 0,001**

1º Tercil

144 (64,9)

107 (74,3)

 

-

-

 

144 (33,1)

107 (74,3)

 

2º Tercil

78 (35,1)

66 (84,6)

 

68 (31,9)

39 (57,4)

 

146 (33,6)

105 (71,9)

 

3º Tercil

-

-

 

145 (68,1)

67 (46,2)

 

145 (33,3)

67 (46,2)

 

Número de moradores

   

0,023***

   

0,037***

   

0,001***

0-5

121 (54,5)

87 (71,9)

 

126 (59,2)

55 (43,7)

 

247 (56,8)

142 (57,5)

 

> 5

101 (45,5)

86 (85,1)

 

87 (40,8)

51 (58,6)

 

188 (43,2)

137 (72,9)

 

Trabalho remunerado o ano todo

   

<0,001***

   

0,001***

   

< 0,001***

Sim

82 (36,9)

49 (59,8)

 

99 (46,5)

37 (37,4)

 

181 (41,6)

86 (47,5)

 

Não

140 (63,1)

124 (88,6)

 

114 (53,5)

69 (60,5)

 

254 (58,4)

193 (76,0)

 

Benefícios Sociais

   

0,561***

   

0,004***

   

0,028***

Sim

173 (77,9)

133 (76,9)

 

153 (71,8)

86 (56,2)

 

326 (74,9)

219 (67,2)

 

Não

49 (22,1)

40 (81,6)

 

60 (28,2)

20 (33,3)

 

109 (25,1)

60 (55,0)

 

DISCUSSÃO

O presente estudo investigou a prevalência de IA em famílias indígenas residentes nas aldeias Jaguapirú e Bororó da reserva indígena do município Dourados, através da Escala Curta de Segurança Alimentar, que possui seis questões relativas aos 12 meses anteriores à entrevista. O método utilizado é proposto pela USDA e nos Estados Unidos foi comprado com outra escala contendo 18 questões e mostrou-se uma boa ferramenta de rastreamento da Insegurança Alimentar17. Porém este método dificulta a comparação com outros estudos realizados no Brasil em que foi utilizado a EBIA.

Dentre as 435 famílias identificadas, a maioria delas apresentou algum grau de insegurança alimentar (64,1%). A elevada prevalência de insegurança alimentar encontrada demonstra uma situação preocupante que as famílias vivenciam na reserva de Dourados. A população indígena possui particularidades socioculturais que variam conforme etnias. Os resultados mostram que apesar das aldeias estarem extremamente próximas, elas possuem condições diferentes, possivelmente devido a aldeia Jaguapirú ser habitada, predominantemente, por indígenas Terenas e Ñandeva, enquanto a Bororó é habitada majoritamente pelos Kaiowá. No passado, os terenas se adaptaram melhor ao novo modo de vida que foram submetidos, o que resultou em uma melhor situação econômica e social25.

Dados sobre a IA em populações indígenas são escassos, no Brasil, temos o trabalho realizado por Fávaro et al.10, que analisaram a prevalência de insegurança alimentar em famílias indígenas que continham crianças menores de 60 meses na sua composição e identificaram 75,5% de IA, estando essas famílias expostas às privações tanto na qualidade como na quantidade de alimentos da dieta.

Dentre os estudos internacionais com populações indígenas, foram encontrados dois estudos, um realizado na Austrália por Markwick26, em que 20,3% dos indígenas apresentavam IA e outro realizado no Canadá por Willows et al.27 no qual 33% das famílias indígenas apresentaram algum grau de IA. Estes estudos também compararam a prevalência de IA alimentar entre indígenas e não indígenas e averiguaram a superioridade em quase quatro vezes nos indígenas.

Dos estudos realizados com populações com o mesmo perfil, o de Pimentel et al.28 realizado com famílias não indígenas de uma região com índices de extrema pobreza identificou 53,8% de IA.

A prevalência de IA do presente estudo foi levemente inferior ao encontrado por Fávaro et al10 com indígenas no Brasil, porém superior aos estudos com não indígenas no Brasil e indígenas de outros países. Entretanto, essas prevalências não seriam comparáveis a esse estudo, uma vez que a metodologia e a amostra foram diferentes.

Sobre as condições socioeconômicas e demográficas, são visíveis diferenças entre as aldeias, a Bororó apresentou piores resultados em relação à escolaridade, à condição econômica e à presença de trabalho remunerado o ano todo por algum membro da família, além dos percentuais de IA alimentar que foram maiores nessa aldeia (77,9%), principalmente da IA com fome (48,2%).

Em relação à fonte de alimentos nota-se a maioria famílias depende da compra (99,1%) e do recebimento de cesta básica (94%) para alimentação. Apenas 10,6% das famílias utilizam a caça, pesca e coleta para subsistência. Essas mudanças são devido às alterações que esses povos sofreram. Na reserva de Dourados, os indígenas vivem em situação de confinamento territorial o que inviabiliza a produção própria de alimentos.

Santos et. al.29 em estudo realizado no Rio Grande do Sul, encontraram prevalências maiores de IA quando o chefe da família apresentava escolaridade inferior a 4 anos de estudo e também nas famílias com classificação econômica E. Markwick et al.26 verificaram que a IA foi fortemente associada com menor renda familiar e que para cada redução da faixa de renda a IA apresentou um aumento. Tal constatação, também, foi encontrada no estudo de Panigassi et al.30 onde as prevalências de IA foram superiores em famílias com maior número de membros, menor renda e menor escolaridade. Sendo que, chefes com escolaridade abaixo do nível de ensino fundamental apresentaram 4,6 vezes mais chances de ter IA leve e 8,4 vezes mais de ter IA moderada e grave, quando comparados com os de maior escolaridade. No estudo de Pimentel et al.28 as variáveis de renda familiar mensal per capita, escolaridade do chefe da família, nível socioeconômico e número de moradores, apresentaram associação significante com a insegurança alimentar.

Os resultados encontrados do presente estudo reforçam estas afirmativas, visto que famílias em condições socioeconômicas menos favorecidas, com menor escolaridade e maior densidade familiar apresentaram maiores prevalências de insegurança alimentar.

A insegurança alimentar atinge grande parcela da população mundial, principalmente as populações dos países em desenvolvimento como o Brasil e, especialmente as famílias em situação de vulnerabilidade, como a população indígena31. Garantir uma alimentação adequada e saudável em terras que não apresentam plenas condições para sobrevivência física e cultural ainda é o dilema. Mesmo os povos com terras já regularizadas enfrentam dificuldades para promoção da sua soberania alimentar32.

É de extrema necessidade o combate às desigualdades que persistiam em grupos populacionais específicos, em particular os povos indígenas, espera-se que os resultados encontrados possam auxiliar na elaboração de ações de melhorias de qualidade de vida e saúde destinadas a esses povos. As ações relativas à Vigilância Nutricional e as pesquisas sobre a saúde e nutrição de povos devem ser continuamente realizadas, já que essas informações são importantes para o direcionamento de políticas públicas e ações de saúde, tanto em nível local como na esfera nacional.

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